Cristiano Imhof

CÓDIGO CIVIL INTERPRETADO

Cristiano Imhof tooltip

Precisa de ajuda?

Ligue +55 47 3361-6454

contato@booklaw.com.br

Jurisreferência™

STJ. Art. 1.242 do CC/2002. Usucapião 'ordinário' e 'tabular'. Distinção

Data: 24/06/2014

"Vê-se, a partir da transcrição do dispositivo legal, que para a ocorrência de usucapião ordinária, basta que se verifique a presença de três elementos: (i) o transcurso do prazo (10 anos) de posse sem oposição; (ii) o justo título; e (iii) a boa-fé. Na usucapião tabular, além da redução do prazo da prescrição aquisitiva para 5 anos, a esses requisitos somam-se ainda outros quatro: (i) a aquisição deve ser onerosa, (ii) deve haver prévio registro, (iii) referido registro deve ter sido cancelado e (iv) o adquirente deve ter estabelecido no imóvel sua moradia ou realizado investimentos de interesse social e econômico. Vê-se, portanto, que o principal elemento que difere as duas figuras, do ponto de vista substancial, está em que, na usucapião ordinária, uma pessoa que não tem o registro de propriedade litiga para obter esse registro. Na usucapião tabular, por sua vez, uma pessoa que já obteve esse registro, portanto já foi legalmente considerada proprietária, litiga para restabelecer essa propriedade, que por algum motivo teve invalidado o respectivo registro. Mas, retomando o que já se disse acima, há sempre, tanto numa figura como na outra, uma oposição entre autor(es) e réu(s), ambos pleiteando a propriedade de um mesmo bem imóvel. Um exemplo clássico de cabimento de usucapião tabular estaria na hipótese de dupla matrícula, incidente sobre o mesmo imóvel. Com o cancelamento de uma delas, pelo oficial de registro de imóveis ou pelo juízo da vara de registros públicos, o proprietário putativo (segundo a matrícula cancelada) que esteja residindo há muito tempo no imóvel pode ajuizar, em face do proprietário efetivo inerte, uma ação de usucapião. Há, nessa ação, a já mencionada oposição entre o proprietário putativo e o proprietário real".

Íntegra do acórdão:

Acórdão: Recurso Especial n. 1.133.451 - SP.
Relator: Min. Nancy Andrighi.
Data da decisão: 27.03.2012.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.133.451 - SP (2009⁄0065300-4)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : CELSO ALVES JANEIRO E OUTROS
ADVOGADO : DIOGO LEONARDO MACHADO DE MELO E OUTRO(S)
RECORRIDO : IRMÃOS ANDRÉ LTDA
ADVOGADO : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS

EMENTA: CIVIL. USUCAPIÃO TABULAR. REQUISITOS. MERO BLOQUEIO DE MATRÍCULA. APRESENTAÇÃO DE CERTIDÃO DO INSS INAUTÊNTICA PELOS VENDEDORES. LONGA INATIVIDADE POR PARTE DO ÓRGÃO. AUSÊNCIA DE TENTATIVAS DE ANULAÇÃO DO ATO OU RECEBIMENTO DO CRÉDITO. DECURSO DE TEMPO. CABIMENTO DA USUCAPIÃO. 1. A usucapião normalmente coloca em confronto particulares que litigam em torno da propriedade de um bem móvel. 2. Na hipótese dos autos, a constatação de que os vendedores do imóvel apresentaram certidão negativa de tributos previdenciários inautêntica levou o juízo da vara de registros públicos, em processo administrativo, a determinar o bloqueio da matrícula do bem. 3. O bloqueio da matrícula não colocou vendedores e compradores em litígio em torno da propriedade de um bem imóvel. Apenas promoveu uma séria restrição ao direito de propriedade dos adquirentes para a proteção do crédito financeiro do INSS. 4. Pelas disposições da Lei de Registros Públicos, o bloqueio da matrícula é ato de natureza provisória, a ser tomado no âmbito de um procedimento maior, no qual se discuta a nulidade do registro público. A lavratura de escritura de compra e venda sem a apresentação de certidão previdenciária é nula, pelas disposições do art. 47 da Lei 8.212⁄91. Assim, o bloqueio seria razoável no âmbito de uma discussão acerca dessa nulidade. 5. Do ponto de vista prático, o bloqueio produz efeitos em grande parte equivalentes ao do cancelamento da matrícula, uma vez que torna impossível, ao proprietário de imóvel com matrícula bloqueada, tomar qualquer ato inerente a seu direito de propriedade, como o de alienar ou de gravar o bem. 6. Se o INSS ou qualquer outro legitimado não toma a iniciativa de requerer o reconhecimento ou a declaração da nulidade da escritura, o bloqueio da matrícula, por si só, não pode prevalecer indefinidamente. Na hipótese em que, mesmo sem tal providência, o bloqueio acaba por permanecer, produzindo efeitos de restrição ao direito de propriedade dos adquirentes do bem, a inatividade do INSS deve produzir alguma consequência jurídica. 7. Num processo de usucapião tradicional, o prazo de prescrição aquisitiva só é interrompido pela atitude do proprietário que torne inequívoca sua intenção de retomar o bem. Se, por uma peculiaridade do direito brasileiro, é possível promover a restrição do direito de propriedade do adquirente para a proteção de um crédito, a prescrição aquisitiva que beneficia esse adquirente somente pode ser interrompida por um ato que inequivocamente indique a intenção do credor de realizar esse crédito. 8. Se, após dez anos a partir do bloqueio da matrícula, o INSS não requer a declaração de nulidade da compra e venda, não executa o crédito previdenciário que mantém perante o vendedor do imóvel, não requer o reconhecimento de fraude à execução, não penhora o bem controvertido, enfim, não toma providência alguma, é possível reconhecer, ao menos em status assertionis, a ocorrência de usucapião tabular, de modo que o indeferimento da petição inicial da ação que a requer é providência exagerada. 9. Recurso especial conhecido e provido, reformando-se a decisão que indeferiu a petição inicial do processo e determinando-se seu prosseguimento, com a citação dos interessados, nos termos da lei.

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Massami Uyeda, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 27 de março de 2012(Data do Julgamento)

MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora

RECURSO ESPECIAL Nº 1.133.451 - SP (2009⁄0065300-4)
RECORRENTE : CELSO ALVES JANEIRO E OUTROS
ADVOGADO : DIOGO LEONARDO MACHADO DE MELO E OUTRO(S)
RECORRIDO : IRMÃOS ANDRÉ LTDA
ADVOGADO : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS

RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Trata-se de recurso especial interposto por CELSO ALVES JANEIRO, NEYDE ANDRÉ JANEIRO, CRISTINA ANDRÉ JANEIRO, MARIA HELENA ANDRÉ JANEIRO e ELIANA ANDRÉ JANEIRO, para impugnação de acórdão exarado pelo TJ⁄SP no julgamento de recurso de apelação.

Ação: de usucapião tabular, ajuizada pelos recorrentes em face de IRMÃOS ANDRÉ LTDA.

Na inicial, os autores afirmam que adquiram, por escritura lavrada em 26 de novembro de 1996, um imóvel da sociedade IRMÃOS ANDRÉ. A partir da lavratura, que foi levada a registro quase dois anos depois, em 30 de setembro de 1998, os autores afirmam que exerceram, de forma mansa e pacífica, a posse direta do bem.

Após a lavratura da escritura, informações prestadas pelo INSS ao oficial do registro público, dando conta de uma suposta falsidade da certidão negativa de tributos previdenciários apresentada pelo vendedor, levaram à instauração o processo de Providências Administrativas nº 000.99.077849-5. Tendo isso em vista, em 16 de julho de 1999 o juízo da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, Capital, determinou o bloqueio da matrícula. Tal bloqueio foi efetivado pelo Cartório de Registro de Imóveis competente em 12 de agosto de 1999.

Cientes do bloqueio, os autores procuraram levantá-lo por diversos meios. Impetraram mandado de segurança, sem sucesso por decurso de prazo, e notificaram os vendedores para providências, também sem qualquer resposta.

Tendo isso em vista, ajuizaram, em 21 de maio de 2007 - ou seja, mais de dez anos após a lavratura da escritura, e mais de sete anos após a efetivação do bloqueio - a ação de usucapião tabular que deu origem a este recurso especial, com fundamento na norma do art. 1.242, caput e parágrafo único, do CC⁄02.

Sentença: indeferiu a petição inicial, antes mesmo de determinar a citação no processo, por dois fundamentos.

O primeiro fundamento é o de que o art. 1.242, parágrafo único, do CC⁄02, que prevê o instituto da usucapião tabular, introduziu regra nova no ordenamento jurídico brasileiro, de modo que a contagem do prazo da prescrição aquisitiva somente poderia se iniciar na data do início vigência do Código. Além disso, a regra do art. 2.029 do CC⁄02 previu o acréscimo de dois anos ao prazo original, nas hipóteses em que a prescrição aquisitiva tenha iniciado seu cômputo na vigência do Código anterior. Tendo isso em vista, o prazo ainda não teria sido completado no momento do ajuizamento da ação.

O segundo fundamento é o de que o registro do imóvel controvertido não foi cancelado, mas apenas bloqueado. Para que seja possível pleitear a usucapião tabular, seria indispensável o requisito do cancelamento do registro.

A sentença foi impugnada mediante recurso de apelação.

Acórdão: negou provimento ao recurso, nos termos da seguinte ementa:

PETIÇÃO INICIAL - Usucapião - Imóvel urbano adquirido por escritura pública registrada na respectiva matrícula - Domínio do imóvel - Ausência de interesse processual para adquirir por usucapião direito que já integra o patrimônio dos autores - Usucapião tabular serve à aquisição do domínio por quem teve o registro cancelado - Art. 1242, parágrafo único, do C Civil de 2002 - Bloqueio da matrícula do imóvel, porque a certidão negativa de débito junto à presidência (sic) social não era autêntica - Via inadequada para o pretendido cancelamento do bloqueio da matrícula pelo decurso do tempo - Necessidade de se obter a extinção de eventuais débitos fiscais previdenciários, para a expedição da certidão negativa autêntica, que possibilite o desbloqueio - Indeferimento da petição inicial mantido - Recurso improvido.

Embargos de declaração: interpostos, foram rejeitados.

Recurso especial: interposto com fundamento na alínea 'a' do permissivo constitucional. Alega-se violação dos arts.1.242, parágrafo único, do CC⁄02, bem como 591 do CPC.

Não houve contrarrazões.

Admissibilidade: o recurso não foi admitido na origem, motivando a interposição do agravo de instrumento nº 1.076.762⁄SP, a que dei provimento para melhor apreciação da controvérsia.

É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.133.451 - SP (2009⁄0065300-4)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : CELSO ALVES JANEIRO E OUTROS
ADVOGADO : DIOGO LEONARDO MACHADO DE MELO E OUTRO(S)
RECORRIDO : IRMÃOS ANDRÉ LTDA
ADVOGADO : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS

VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Cinge-se a lide a estabelecer as condições para o exercício do direito à usucapião tabular, disciplinada pelo art. 1.242, parágrafo único, do CPC. Na hipótese dos autos, o acórdão impugnado confirmou uma sentença que indeferira a petição inicial de uma ação dessa natureza.

I - O prazo da prescrição aquisitiva

Conquanto o principal fundamento da sentença que extinguiu o processo sem resolução do mérito tenha sido o não cumprimento do prazo da prescrição aquisitiva, dada a conjugação dos arts. 1.242, parágrafo único, e 2.029, ambos do CC⁄02, o acórdão recorrido manteve a sentença por fundamento autônomo, não abordando a matéria. Provocado a se pronunciar sobre o tema quando da interposição de embargos de declaração, o TJ⁄SP ponderou que "a questão de direito intertemporal ficou superada, na medida em que o julgado embargado admitiu a vigência, no caso em tela, do art. 1.242, parágrafo único, do CC⁄2002".

Assim, não é objeto deste recurso especial a discussão acerca da incidência do art. 2.029 do CC⁄02 à espécie. O prazo para a prescrição aquisitiva, portanto, será considerado preenchido, e o recurso será apreciado tendo em vista os demais requisitos fixados pelo art. 1.242 do CC⁄02 para a usucapião tabular.

II - Os requisitos da usucapião tabular. Alegada violação do art. 1.242, parágrafo único, do CC⁄02.

O processo sob julgamento apresenta uma situação inusitada: tendo em vista a apresentação, pelo vendedor, de uma certidão negativa de débitos tributários inautêntica no momento da venda de bem imóvel, a aquisição, inicialmente registrada de forma normal no cartório de registro de imóveis, deu lugar ao posterior bloqueio da matrícula do bem. Esse bloqueio perdurou por muitos anos - tudo indica, até hoje - sem que qualquer providência adicional tenha sido tomada pelo antigo proprietário do imóvel ou mesmo pelo INSS, credor dos valores ocultados pela certidão falsa. Tendo em vista essa inatividade, o adquirente do imóvel, alegando boa-fé e justo título, pretende, agora, ver reconhecido seu direito à aquisição originária do bem, pelo instituto da usucapião tabular.

Menciono que a situação é inusitada porquanto a análise do instituto da usucapião tabular mostra que, em princípio, ele não foi concebido para esse propósito. Contudo, peculiaridades do direito brasileiro levam a que seja, ao menos em princípio, razoável a sua invocação.

A usucapião de bens imóveis, em termos gerais, é um instituto jurídico que coloca em oposição partes que, sempre, têm a intenção de obter, para si, a declaração de propriedade de um bem. De um lado, o(s) proprietário(s) antigo(s), que por sua negligência tenha(m) permitido a ocupação do bem por terceiro(s) durante longo período de tempo. De outro lado, o(s) possuidor(es) de longa data, que diante da falta de oposição do titular do domínio, pleiteia(m) o reconhecimento da prescrição aquisitiva do bem. Esse conflito está presente em todas as formas de usucapião, extraordinária, ordinária, constitucional.

Cada um dos polos dessa relação jurídica pode ser preenchido por múltiplos particulares, de modo que é comum o litisconsórcio ativo ou passivo nesta ação, mas o importante para ser ressaltado é que há, sempre, contraposição de interesses em torno da propriedade de um mesmo bem imóvel.

A peculiaridade da usucapião tabular está em que ela, como subspécie de usucapião ordinária, acrescenta-lhe alguns requisitos, sem contudo desvirtuar sua natureza. Diz o art. 1.242 do CC⁄02, bem como seu parágrafo único:

Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.

Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada (sic) posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

Vê-se, a partir da transcrição do dispositivo legal, que para a ocorrência de usucapião ordinária, basta que se verifique a presença de três elementos: (i) o transcurso do prazo (10 anos) de posse sem oposição; (ii) o justo título; e (iii) a boa-fé. Na usucapião tabular, além da redução do prazo da prescrição aquisitiva para 5 anos, a esses requisitos somam-se ainda outros quatro: (i) a aquisição deve ser onerosa, (ii) deve haver prévio registro, (iii) referido registro deve ter sido cancelado e (iv) o adquirente deve ter estabelecido no no imóvel sua moradia ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

Vê-se, portanto, que o principal elemento que difere as duas figuras, do ponto de vista substancial, está em que, na usucapião ordinária, uma pessoa que não tem o registro de propriedade litiga para obter esse registro. Na usucapião tabular, por sua vez, uma pessoa que já obteve esse registro, portanto já foi legalmente considerada proprietária, litiga para restabelecer essa propriedade, que por algum motivo teve invalidado o respectivo registro.

Mas, retomando o que já se disse acima, há sempre, tanto numa figura como na outra, uma oposição entre autor(es) e réu(s), ambos pleiteando a propriedade de um mesmo bem imóvel.

Um exemplo clássico de cabimento de usucapião tabular estaria na hipótese de dupla matrícula, incidente sobre o mesmo imóvel. Com o cancelamento de uma delas, pelo oficial de registro de imóveis ou pelo juízo da vara de registros públicos, o proprietário putativo (segundo a matrícula cancelada) que esteja residindo há muito tempo no imóvel pode ajuizar, em face do proprietário efetivo inerte, uma ação de usucapião. Há, nessa ação, a já mencionada oposição entre o proprietário putativo e o proprietário real.

Na hipótese dos autos, essa controvérsia em torno da propriedade não acontece. O antigo proprietário do imóvel, IRMÃOS ANDRÉ, não se encontra em litígio com os novos proprietários, os recorrentes. Eles tinham a intenção de vender o bem, venderam-no, passaram a respectiva escritura e se desvincularam da questão, ao menos até o bloqueio da matrícula. Os novos proprietários, autores desta ação, quiseram o imóvel, pagaram por ele, tomaram posse e promoveram melhorias no bem, inclusive lá estabelecendo, segundo consta dos autos, a sua residência. A oposição neste processo, portanto, não está entre o proprietário real e o proprietário putativo, mas entre o proprietário putativo e o INSS, cujo interesse vem sendo administrativamente tutelado pelo bloqueio da matrícula.

Mas o INSS não pleiteia a propriedade do bem; o proprietário antigo também não a pleiteia; somente o autor da ação a requereu. Então, a pergunta a fazer é: quais os interesses protegidos neste litígio? Bem vistas as coisas, o interesse que se discute nos autos é o interesse ao crédito previdenciário.

Está claro que o que motivou todo este conflito é uma peculiaridade do direito brasileiro. Para a aquisição de um imóvel vendido por pessoa jurídica, no Brasil, é necessária apresentação de certidão negativa de débitos previdenciários (art. 47 da Lei 8.212⁄91), ou seja, é preciso que o vendedor tenha quitado ou obtido a suspensão da exigibilidade dos eventuais débitos dessa natureza que tenha acumulado perante o INSS. O motivo que se pode vislumbrar para tal exigência é o de que o imóvel vendido funciona como uma garantia legal de pagamento desses débitos. Essa garantia não assume a figura de uma hipoteca legal, nem de qualquer direito real sobre coisa alheia, mas ao obstar o exercício do direito de disposição do bem pelo legítimo proprietário, a garantia comporta-se como se tivesse a eficácia de um direito real sobre coisa alheia.

O bloqueio da matrícula se deu, portanto, em última análise, para a proteção desse crédito previdenciário. Tanto que o TJ⁄SP, ao fundamentar o acórdão recorrido, menciona que, para obter o desbloqueio da matrícula, "deverão os embargantes obter a extinção do débito previdenciário, a fim de que seja expedida certidão negativa autêntica. Assim agindo, poderão voltar-se contra os vendedores, buscando ser reembolsados".

Mas é possível que esse bloqueio da matrícula, para a proteção de um crédito, se estenda eternamente? Ele impede uma ação de usucapião?

Pois bem. O bloqueio da matrícula não produz, como efeito, a invalidade do registro de propriedade, de modo que os recorrentes não a perderem meramente por força desse ato administrativo. Esse é, inclusive, um dos fundamentos utilizados pelo TJ⁄SP para indeferir a inicial da ação de usucapião. Contudo, nos expressos termos do art. 214, §4º, da Lei de Registros Públicos (LRI), uma vez bloqueada a matrícula, torna-se impossível ao oficial nela praticar qualquer ato adicional, salvo com autorização judicial. Ou seja, não é possível ao proprietário, depois do bloqueio, alienar, onerar, permutar, desmembrar ou praticar uma série de outros atos inerentes ao direito de propriedade sobre o bem. O bloqueio exerce, portanto, sem dúvida, um efeito de restrição a tal direito, conquanto não represente, por si só, a perda da propriedade pela invalidade do registro. O direito de propriedade, portanto, permanece vigente, mas limitado.

Também pela dicção do art. 214 da LRP, o bloqueio da matrícula não é um ato autônomo. Ele é praticado no âmbito de um procedimento maior, tendente à nulidade da matrícula ou do registro. Esse procedimento é o que está previsto no caput do art. 214, que dispõe que "as nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, independentemente da ação direta". É nesse âmbito que está inserida a possibilidade de bloqueio, previsto no §3º da norma com a seguinte redação: "Se o juiz entender que a superveniência de novos registros poderá causar danos de difícil reparação poderá determinar de ofício, a qualquer momento, ainda que sem oitiva das partes, o bloqueio da matrícula do imóvel". O bloqueio, portanto, opera, no âmbito administrativo, como operaria uma medida cautelar no âmbito judicial. Ele tem uma clara função provisória, uma função de preservar direitos no âmbito de um processo de cancelamento de registro. Por esse motivo, não pode, em hipótese alguma, ter seus efeitos prolongados indefinidamente no tempo.

A falta de apresentação da certidão negativa de tributos previdenciários geraria, no termos do art. 48 da Lei 8.212⁄91, a nulidade da escritura pública de compra e venda. Portanto, o bloqueio da matrícula deveria persistir até que a autarquia interessada - o INSS - ou qualquer outro eventual legitimado pleiteasse, administrativa ou judicialmente, o reconhecimento da nulidade do ato, como seria de direito. Pelas informações colhidas dos autos, no entanto, nada disso foi feito. O bloqueio permaneceu hígido, por si só, sem que a nulidade da escritura fosse sequer requerida.

Disso é possível extrair algumas reflexões.

Em primeiro lugar, se o bloqueio, com todas as suas consequências restritivas ao exercício do direito de propriedade, permaneceu hígido independentemente de processo tendente à declaração de nulidade do registro, é possível equipará-lo, para os fins do art. 1.242, parágrafo único, do CC⁄02, ao cancelamento do registro de propriedade. Isso porque um proprietário que não pode onerar ou alienar seu imóvel tem sua situação jurídica, do ponto de vista prático, muito aproximada à do mero possuidor com justo título. Ele pode usufruir do imóvel, nele permanecendo ou o alugando, mas não pode fazer muito mais que isso.

Em segundo lugar, a ação que originou este recurso especial não discute a eventual anulação do bloqueio. Em uma ação que tivesse essa finalidade, poder-se-ia discutir eventual prescrição ou decadência da pretensão ou do direito do INSS de cobrar os créditos que motivaram a certidão negativa. Ou também se poderia discutir, se houvesse pedido efetuado em reconvenção pela autarquia, a eventual declaração da nulidade da compra e venda. Mas não se pode impor aos compradores, aqui recorrentes, o ônus de provocar o INSS a manifestar seu interesse na declaração de nulidade que a Lei lhe confere.

Em terceiro lugar, a providência tomada pelos recorrentes é compatível com o que o direito lhes assiste. Aguardaram que o INSS se posicionasse, pleiteando a nulidade da venda para proteção de seu crédito. Tal instituição não se movimentou, nem para requerer a nulidade da escritura, nem para requerer a penhora do bem, alegando que a venda se deu em fraude à execução. O INSS permaneceu inerte. Sendo assim, alguma consequência tem de ser extraída dessa inatividade.

Em quarto lugar, se, como dito acima, uma ação de usucapião regular coloca em oposição dois polos de interesses, ambos recaindo sobre a mesma propriedade imóvel, a situação dos autos é sui generis: os recorrentes têm interesse na propriedade, mas o INSS tem interesse na garantia de seu crédito. A oposição, nestes autos, não é propriedade-propriedade, mas propriedade-crédito.

De tudo decorre a seguinte conclusão.

Numa situação que envolvesse usucapião regular, qualquer manifestação, por parte do proprietário, que demonstrasse seu inequívoco interesse de retomar o bem, obstaria o prazo de prescrição aquisitiva por parte dos possuidores. Mas na peculiar situação de propriedade-crédito apresentada nestes autos, gerada pela exigência sui generis de certidões negativas como condição de registro de uma compra e venda, a prescrição aquisitiva somente pode se considerar interrompida caso o titular do crédito - aqui, o INSS - manifestasse de modo inequívoco seu direito de fazer valer a garantia que a Lei lhe atribui.

Neste processo não há informação de que o INSS tenha executado seu crédito previdenciário, que tenha pedido o reconhecimento de eventual fraude contra credores ou à execução por força da venda aqui discutida, que tenha solicitado a penhora do imóvel em questão, que tenha pedido a declaração de nulidade da venda, nada. Em nenhum momento ele manifestou seu interesse na realização do crédito mediante a execução da garantia que a Lei lhe conferiu.

Nessas condições, é impossível corroborar as conclusões do acórdão recorrido. Dizer que é o adquirente que tem de promover a satisfação do crédito da autarquia para poder regularizar seu imóvel equivale a desconsiderar totalmente a regra de que nenhum direito perdura eternamente diante da inércia de seu titular. Mencionar que há, nos dias de hoje, inúmeras certidões previdenciárias falsas, como justificativa para a conclusão de que os autores, ao adquirir o bem, deveriam ter duvidado da certidão que receberam, é reverter a regra de direito segundo a qual é a boa-fé que se presume, nunca a má-fé. Dizer que um particular tem de desconfiar de uma certidão aparentemente emitida por um órgão público, sob pena de arcar com as consequências da falsidade posteriormente descoberta, equivaleria a dizer que, no Brasil, os documentos públicos presumem-se falsos até prova em contrário, o que é por si só um absurdo, é o oposto do que se espera de uma sociedade organizada em torno de um Estado Democrático de Direito. Vale lembrar que, na hipótese dos autos, até mesmo o oficial do registro público enganou-se com a certidão aqui discutida, registrando inicialmente a compra e venda, para depois bloquear a matrícula. Seria possível presumir a má-fé de um adquirente nessas condições?

De tudo decorre que o indeferimento da petição inicial não poderia ter sido determinado pelo juízo, tampouco confirmado pelo Tribunal. Tal medida, inclusive, estendeu a discussão acerca do imóvel indevidamente: hoje, já faz mais de quinze anos - prazo da usucapião extraordinária - desde que a escritura de compra e venda foi lavrada, e o adquirente ainda não goza de maneira integral do direito de propriedade. É muito tempo. O processo deve prosseguir, portanto, em regime de extrema urgência.

Forte nessas razões, conheço e dou provimento ao recurso, reconhecendo o interesse de agir dos recorrentes na usucapião tabular e reformando a decisão que indeferiu a respectiva petição inicial. O processo deve, portanto, prosseguir com a citação do réu e dos demais legitimados, nos termos dos arts. 941 e seguintes, do CPC.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO

TERCEIRA TURMA

Número Registro: 2009⁄0065300-4
PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.133.451 ⁄ SP

Números Origem: 200801773169 5441014 5441014501 5830020071566422

PAUTA: 27⁄03⁄2012 JULGADO: 27⁄03⁄2012

Relatora
Exma. Sra. Ministra NANCY ANDRIGHI
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. JOÃO PEDRO DE SABOIA BANDEIRA DE MELLO FILHO
Secretária
Bela. MARIA AUXILIADORA RAMALHO DA ROCHA

AUTUAÇÃO
RECORRENTE : CELSO ALVES JANEIRO E OUTROS
ADVOGADO : DIOGO LEONARDO MACHADO DE MELO E OUTRO(S)
RECORRIDO : IRMÃOS ANDRÉ LTDA
ADVOGADO : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS

ASSUNTO: DIREITO CIVIL - Coisas - Propriedade - Aquisição - Usucapião Especial (Constitucional)

CERTIDÃO
Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Massami Uyeda, Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Imprimir
Ir ao topo

Aplicativos Móveis

Adquira uma assinatura de acesso digital e tenha acesso aos aplicativos para tablets e smartphones, com conteúdo completo.

CONHEÇA TAMBÉM



Todos os direitos reservados. Proibida a cópia total ou parcial deste conteúdo.