O art. 1.696 do Código Civil de 2002 regula as pessoas que estão sujeitas à obrigação alimentar. O Enunciado n. 341, aprovado recentemente pela IV Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal e relativo ao art. 1.696 do CC/2002, decidiu que: "Para fins do art. 1.696, a relação sócioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar". Conheça um pouco mais sobre a parternidade sócioafetiva fazendo a leitura do v. acórdão abaixo reproduzido e prolatado recentemente pela Terceira Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.
Data: 01/12/2006
Acórdão: Apelação Cível n. 2005.042066-1, de Ponte Serrada.
Relator: Des. Sérgio Izidoro Heil.
Data da decisão: 01.06.2006. EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO C/C GUARDA - MENOR ENTREGUE PELA MÃE BIOLÓGICA A SUPOSTO PAI - REGISTRO EM NOME DE AMBOS - AUTOR QUE AVOCA PARA SI A PATERNIDADE - EXAME DE DNA CONCLUSIVO ACERCA DE SUA PATERNIDADE - CASO PECULIAR - MENOR QUE JÁ CONTA COM MAIS DE TRÊS ANOS - INÉRCIA DO PAI BIOLÓGICO NA TOMADA DE MEDIDAS DE URGÊNCIA PARA TOMADA DA CRIANÇA - CONTRIBUIÇÃO DECISIVA PARA CONSOLIDAÇÃO DOS LAÇOS AFETIVOS - ESTUDO SOCIAL INDICANDO AS DIFICULDADES QUE A MODIFICAÇÃO DA SITUAÇÃO ACARRETARÁ À MENOR - PATERNIDADE SOCIOAFETIVA - PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE - MANTENÇA DA GUARDA COM O CASAL QUE VEM CRIANDO A MENOR - ARTIGOS 6º E 33 DO ECA - PEDIDO INICIAL PARCIALMENTE PROCEDENTE - ÔNUS SUCUMBENCIAIS MODIFICADOS - RECURSO PROVIDO.
Tendo como foco a paternidade socioafetiva, bem como os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e do melhor interesse do menor, cabe inquirir qual bem jurídico merece ser protegido em detrimento do outro: o direito do pai biológico que pugna pela guarda da filha, cuja conduta, durante mais de três anos, foi de inércia, ou a integridade psicológica da menor, para quem a retirada do seio de seu lar, dos cuidados de quem ela considera pais, equivaleria à morte dos mesmos.
Não se busca legitimar a reprovável conduta daqueles que, mesmo justificados por sentimentos nobres como o amor, perpetram inverdades, nem se quer menosprezar a vontade do pai biológico em ver sob sua guarda criança cujo sangue é composto também do seu.
Mas, tendo como prisma a integridade psicológica da menor, não se pode entender como justa e razoável sua retirada de lugar que considera seu lar e com pessoas que considera seus pais, lá criada desde os primeiros dias de vida, como medida protetiva ao direito daquele que, nada obstante tenha emprestado à criança seu dados genéticos, contribuiu decisivamente para a consolidação dos laços afetivos supra-referidos.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2005.042066-1, da comarca de Ponte Serrada (Vara Única), em que é apelante M.A.G., sendo apelado J.M.:
ACORDAM, em Terceira Câmara de Direito Civil, por maioria de votos, conhecer do recurso e dar-lhe provimento, julgando improcedente o pleito exordial quanto à concessão da guarda da menor ao autor, a qual deve ser mantida com o apelante e sua esposa V.G.
Custas na forma da lei.
I -RELATÓRIO:
Trata-se de recurso de apelação interposto por M.A.G. contra sentença proferida nos autos da ação declaratória de paternidade c/c anulatória de registro e busca e apreensão e guarda n. 051.03.000386-6, que julgou procedentes os pedidos, para atribuir ao autor J.M. a paternidade de J.C.G., declarando nulo seu registro de nascimento para fazer constar o nome do autor, bem como concedendo-lhe a guarda da menor. Por fim, condenou os réus ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios, fixados em R$ 2.000,00 (dois mil reais) (fls. 199/208).
Em suas razões de recurso, assevera que: o apelado nunca procurou a criança para dar-lhe qualquer tipo de assistência; a profissão do pai biológico, caminhoneiro, não lhe permite dar à criança a atenção necessária; não há que se falar em sua má-fé; os honorários advocatícios foram fixados em patamar elevado. Pugnou pela reforma da sentença para que a guarda seja outorgada a si e sua esposa, ou, alternativamente, a sua esposa e sua mãe, bem como reduzidos os honorários advocatícios (fls. 212/221).
Houve contra-razões às fls. 227/231.
É o relatório.
II -VOTO:
Trata-se de apelação cível interposta pelo réu M.A.G. com o desiderato de ver reformada a decisão que julgou procedente o pedido ajuizado por J.M., quanto à outorga da guarda em relação à menor J.C.G.
Cumpre rememorar breve resumo da cadeia de fatos de que tratam os autos: V.M., grávida, decidiu dar sua filha ao casal M.A.G. e V.G., sob o argumento, à época, de que era ele o pai da criança, tendo procedido o registro em seu nome e do suposto pai, em março de 2003.
J.M., por sua vez, chamou a si a paternidade biológica da recém-nascida, tendo ajuizado, no mesmo mês, a presente ação, buscando a declaração da paternidade, a anulação do registro e a guarda da menor.
Durante a fase instrutória, foi realizado o exame de DNA, cujo resultado deu a certeza de que o autor, J.M., é o pai biológico de J.C.G.
Prima facie, tal prova parece ser suficiente ao deslinde do feito. Mas não é.
Com o advento do Constituição Federal de 1988 e, em especial, do Código Civil de 2002, vem se formando o entendimento acerca da diferenciação essencial entre os vínculos genéticos e a paternidade propriamente dita, exercida por aquele que despende cuidados, carinho, atenção, segurança, a qual foi nominada como "socioafetiva".
Assim, não bastassem os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, além da proporcionalidade e da razoabilidade - de especial uso no caso de que tratam os autos - a própria Lei Material Civil, em seu artigo 1.593 esclarece que:
"O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consagüinidade ou outra origem" (grifou-se).
Dos entendimentos doutrinários, vale colacionar, das palavras de Luiz Edson Fachin:
"O fato a ser tomado pelo Direito como filiação não constitui apenas um fato biológico, mas, também, um fato social, que se revela tanto na sua manifestação perante o grupo social, como especialmente, na esfera psicológica e afetiva dos sujeitos [...].
A verdade sociológica da filiação se constrói, revelando-se não apenas da descendência, mas no comportamento de quem expende cuidados, carinho no tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, com afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que extrapola o laço biológico, compondo a base da paternidade (Comentários ao novo Código civil, volume XVIII: do direito de família, do direito pessoal, das relações de parentesco. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 24, 25).
Por sua vez, sobre o tema, colhe-se da obra de Boeira:
"A posse de estado de filho revela a constância social da relação paternofilial, caracterizando uma paternidade que existe, não pelo simples fator biológico ou por força de presunção legal, mas em decorrência de elementos que somente estão presentes, frutos de uma convivência afetiva. Cresce, pois, a relevância da noção de posse de estado de filho em todas as legislações modernas, o que demonstra a inviabilidade de uma absorção total, pelo princípio da verdade biológica" (Investigação de paternidade: posse de estado de filho: paternidade socioafetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 54).
Nada obstante não tratar o recurso de insurgência acerca do registro de nascimento da menor, imprescindível tal intróito, como justificativa à tomada de medida extrema que a lide em comento exige.
A narrativa supra denota a ocorrência, ao menos parcial, daquilo se chama de "adoção à brasileira", porquanto o apelante fez registrar, em seu nome, recém-nascida cuja paternidade biológica pertence a outro.
Entretanto, desde o nascimento da menor, já se passaram três anos e dois meses, não tendo o pai biológico, nesse prazo - ou mesmo antes, durante a gravidez - demonstrado, de forma cabal, a vontade, o anseio aflito na tomada da criança para si.
Ora, a conduta exigida de um pai que vê rebento de seu sangue nos braços de "estranhos" é muito mais alterada, apaixonada até, do que o mero ajuizamento de ação judicial, na qual não se pleiteou nenhuma medida de urgência, sequer depois do resultado da prova pericial, há mais de dois anos.
De outro vértice, a menor J.C.G. foi acolhida e tratada pelo casal M.A.G. e V.G. com vínculos afetivos e sociais como se filha fosse, não havendo nos autos sequer uma linha que desabone sua conduta como pais da menor.
Tais fatos não só são incontroversos, como foram admitidos também pelo pai biológico, como se infere do estudo social realizado, valendo transcrever:
"O mesmo relata que quer a criança porque futuramente ela vai ficar revoltada em saber que não está sendo criada pelos pais biológicos, a revolta também será ocasionada em saber que o pai (J. M.) não fez nada diante da situação. Que já conversou por telefone com o casal que cuida de J. e sente muita pena dos mesmos, pois entende que o vínculos familiares são extremamente fortes e a criança entende que aqueles são seus pais biológicos.
J. também tem consciência da dificuldade que terá de criar um vínculo afetivo forte com a filha, considerando que poucos são os dias disponíveis para a mesma. Entende que o carinho e a atenção da Vó não substituem o dos pais. Diante disto, concordará com a decisão da Justiça" (fls. 150/151).
Mas a quaestio não merece ser vista somente sob o prisma daqueles que litigam pela guarda da criança, sendo imprescindível analisar, com orientação do princípio da proporcionalidade, qual conduta trará maiores danos e quem será mais prejudicado.
Em outras palavras, cabe inquirir qual bem jurídico merece ser protegido em detrimento do outro: o direito do pai biológico que pugna pela guarda da filha, cuja conduta, durante mais de três anos, foi de inércia, ou a integridade psicológica da menor, para quem a retirada do seio de seu lar, dos cuidados de quem ela considera pais, equivaleria à morte dos mesmos.
Os estudos na ciência da psicologia, com especial enfoque na retirada de crianças de famílias cuja guarda é irregular, são irrefutáveis acerca da idade de oito a quinze meses como limite a tal procedimento, sob pena de irremediáveis danos.
Da monografia "Adoção intuitu personae - uma proposta de agir", de Júlio Alfredo de Almeida, vale colacionar o seguinte esclarecedor excerto:
"Se a criança é retirada dos cuidados maternos nessa idade, quando está apegada de forma tão possessiva e apaixonada à mãe, é na verdade como seu o seu mundo desabasse. Sua intensa necessidade da mãe permanece insatisfeita e a frustração e saudade podem torná-la desesperada de dor. É necessário um exercício de imaginação para sentir a intensidade dessa aflição. A criança fica tão esmagada quanto qualquer adulto que tinha perdido, pela morte, uma pessoa amada. Para a criança de dois anos, com sua falta de entendimento e total incapacidade para tolerar a frustração, é com se a mãe realmente tivesse morrido. Ela não conhece a morte, mas apenas a ausência, e se a única pessoa que pode satisfazer sua necessidade imperativa está ausente, é como se tivesse morta, tão esmagador é o sentimento de perda" (BOWLBY, John. Cuidados maternos e saúde mental. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes).
O estudo social já referido, lavrado em 02.12.04, chegou a conclusão em consonância com tal entendimento:
"O contato físico de pai para filho será insatisfatório, devido ao trabalho do pai, deste forma a responsabilidade de educação e criação ficará a cargo da Avó Paterna, que já cuida de outros netos, inclusive de um filha de J.M.
O fato de a criança J. já obter um ano e nove meses, e desde o seu nascimento estar recebendo todos os cuidados, atenção e afeto necessários ao seu desenvolvimento psicossocial (segundo J.M. - pai biológico), acredito que a vinda de J. para a família e J. ocasionará uma desestruturação psicológica tanto de J. [menor], quanto da família de J. [pai biológico], desta forma caso a criança fique com o pai biológico, necessitará de acompanhamento psicológico freqüente" (fls. 151/152).
Desta feita, à luz do princípio da proporcionalidade, é de ser mantida a menor com o casal M.A.G. e V.G., a título de guarda, como assim permite o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 33:
"Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.
§ 1º A guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros.
§ 2º Excepcionalmente, deferir-se-á a guarda, fora dos casos de tutela e adoção, para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou responsável, podendo ser deferido o direito de representação para a prática de atos determinados".
No mesmo raciocínio, o art. 6° do Estatuto da Criança e do Adolescente, dispõe que "na interpretação desta lei, levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento".
Nesse norte, em casos análogos, a jurisprudência pátria assim decidiu:
"É a família natural o ente social próprio onde, em princípio, deve permanecer a criança, de modo a que lhe seja proporcionado os meios de fortalecimento e estruturação de seu lar de origem. Cede, entretanto, à família substituta, pela guarda, tutela ou adoção, se aquela se desintegra e expõe a risco a evolução equilibrada da criança, e esta, que entra em lugar da primitiva, possibilita uma melhor integração social" (Apelação Cível nº 2002.001.24771, 3ª Câmara Cível do TJRJ, Rel. Des. Antônio Eduardo F. Duarte. j. 01.04.2003).
Ainda:
"APELAÇÃO. ADOÇÃO. Estando a criança no convívio do casal adotante há aproximadamente 4 anos, já tendo com eles desenvolvido vínculos afetivos e sociais, é inconcebível retirá-la da guarda daqueles que reconhece como pais, mormente, quando a mãe biológica, demonstrou interesse em dá-la em adoção, depois arrependendo-se. Evidenciado que o vínculo afetivo da menor, a esta altura da vida, encontra-se bem definido na pessoa dos apelados, deve-se prestigiar, como reiteradamente temos decidido neste Colegiado, a paternidade sócio-afetiva sobre a paternidade biológica, sempre que, no conflito entre ambas, assim apontar o superior interesse na criança. Negaram provimento" (Apelação Cível nº 70001790039, 7ª Câmara Cível do TJRS, Rio Grande, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos. j. 02.05.2001).
Mais:
"A RAZÃO DE SER DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE É O BEM-ESTAR DO MENOR. Em situações peculiares, defere-se a guarda, fora dos casos de tutela e adoção. Inexiste colisão entre o exercício do pátrio poder e a guarda" (Apelação Cível nº 54695-0, 3ª Câmara Cível do TJPE, Recife, Rel. Des. Freitas Medeiros. j. 23.05.2000, un., DOE 06.09.2000).
Não se busca, com essa decisão, legitimar a reprovável conduta daqueles que, mesmo justificados por sentimentos nobres como o amor, perpetram inverdades, nem se quer menosprezar a vontade do pai biológico em ver sob sua guarda criança cujo sangue é composto também do seu; aliás, é muito importante frisar que, dos adultos envolvidos na celeuma, aquele de maior ingenuidade e sinceridade foi o próprio apelado.
Mas, tendo como prisma a integridade psicológica da menor, não se pode entender como justa e razoável sua retirada de lugar que considera seu lar e com pessoas que considera seus pais, lá criada desde os primeiros dias de vida, como medida protetiva ao direito daquele que, nada obstante tenha emprestado à criança seu dados genéticos, contribuiu decisivamente para a consolidação dos laços afetivos suprareferidos.
Vale ressaltar, ainda, que cabe ao apelante e sua esposa, querendo, que busquem atráves dos meios judiciais pertinentes a regularização da situação fática.
Desta feita, em razão da procedência parcial dos pedidos, modificam-se os ônus sucumbenciais, motivo pelo qual condena-se as partes ao pagamento pro rata das custas processuais, bem como honorários advocatícios, estes fixados em R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais) em favor do autor/apelado, e R$ 500,00 (quinhentos reais) em favor dos réus, atendendo-se a insurgência aduzida pelo apelante, também neste cerne.
Diante do exposto, vota-se pelo conhecimento e provimento do recurso, julgando parcialmente improcedente o pleito exordial quanto à concessão da guarda da menor ao autor J.M., a qual deve ser mantida com o apelante M.A.G e sua esposa V.G.
III -DECISÃO:
Nos termos do voto do relator, a Câmara, por maioria, conheceu do recurso e deu-lhe provimento, julgando improcedente o pleito exordial quanto à concessão da guarda da menor ao autor, a qual deve ser mantida com o apelante e sua esposa V.G.
Encaminhe-se cópia deste acórdão, via AR-MP, pessoalmente às partes.
Participou do julgamento, com voto vencedor, o Exmo. Sr. Desembargador Marcus Tulio Sartorato.
Florianópolis, 1 de junho de 2006.
Fernando Carioni
PRESIDENTE
Sérgio Izidoro Heil
RELATOR
Declaração de voto vencido do Exmo. Sr. Des. Fernando Carioni:
Ousei divergir da douta maioria, no que concerne a manutenção da menor com o apelante e sua esposa, pelas razões que passo a expor.
É certo que, antes mesmo de ser uma prerrogativa do pai biológico, é direito da filha ter consigo a companhia de seus pais naturais.
Dispõe o art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.
Não fosse isso, o art. 1.634 do vigente Código Civil deixa claro que é função dos pais, no exercício do poder familiar, as funções de criar, educar e de ter a companhia e guarda de seus filhos. Vejamos:
Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I - dirigir-lhe a criação e educação;
II - tê-los em sua companhia e guarda;
[...]
VI - reclamar de quem ilegalmente os detenha;
[...]
A respeito, lecionam os doutrinadores Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery:
Direito de companhia dos filhos. Decorre do dever de assistir, criar e educar os filhos, tê-los em sua companhia. Os pais, têm, portanto, o direito e do dever de guarda dos filhos. Qualquer um dos pais pode reclamar o direito de ter filho em sua companhia, exercitável contra quem o detenha injustamente, isto é, sem título jurídico. Para tanto pode utilizar-se do instituto da busca e apreensão de pessoas (CPC 839), além de outras medidas provisionais tais como: a) a posse provisória dos filhos, em caso de anulação de casamento, separação judicial ou divórcio (CPC 888 III); b) a guarda e a educação dos filhos, regulado o direito de visita (CPC 888 VII) etc.
E ainda:
Direitos e deveres decorrentes do poder familiar. Os pais têm o poder familiar, que significa, a um só tempo, o poder-dever e direito. A expressão "pátrio poder" foi substituída por poder familiar em razão da igualdade substancial entre os pais na educação dos filhos e na direção da sociedade conjugal (CF 226 § 5.º).
No presente caso, restou incontroverso nos autos que o recorrente não é pai legítimo da criança, tendo, no entanto, registrado como seu filho de outrem.
Em que pese o apelante ter cuidado da menor J.C.M como se fosse sua filha, tal assistência não deixa de estar eivada de ilegalidade, na medida em que ficou comprovado durante a instrução do feito as diversas tentativas do recorrente de enganar o Poder Judiciário, seja "através da negativa da terceira ré em afastar o relacionamento sexual com o autor seja com a versão mentirosa de tê-lo mantido com o segundo réu ou seja através de inúteis e infundadas preliminares argüidas na contestação, visando desviar a busca da verdade real; preocupados com a própria satisfação pessoal, tentaram obstar um direito incontestável e irrenunciável do autor e de sua filha biológica" (fl. 206).
Desse modo, não há como manter a guarda da criança em poder do apelante, porquanto inexiste fundamento jurídico para amparar sua pretensão.
Ressalta-se que também foi verificado que a mãe biológica, que é parte legítima para figurar no polo passivo da demanda, sequer manifestou interesse quanto a guarda de sua filha, sendo que além de ter entregue a menor para o apelante e sua esposa criar devido a dificuldades financeiras, já mantém relacionamento com uma outra pessoa, estando grávida à época de seis meses, conforme documento de fls. 146 a 147.
Desse modo, com base nos dispositivos legais supra verifica-se a possibilidade do pai biológico reclamar o direito de ter consigo a companhia de sua filha contra quem injustamente a detenha, para que haja o correto exercício do poder familiar, ainda mais quando inexiste qualquer das situações que autorizam a extinção, suspensão ou a perda do poder familiar, respectivamente, nos arts. 1.635, 1.637 e 1.638, todos do Código Civil.
Da análise do estudo social de fls. 148 a 152, constata-se que o pai biológico da menor J.C.M, possui plenas condições financeiras e afetivas de manter a guarda de sua filha, dando-lhe o amparo necessário para seu adequado desenvolvimento. Isso tanto é verdade que, segundo Assistente Social, o apelado cuida desde o nascimento de uma filha de 9 (nove) anos com o auxílio de sua mãe, o que demonstra ser um pai dedicado e comprometido com a paternidade.
Não obstante, a preocupação do recorrido de exercer a figura paterna fica evidenciada quando afirma que "devidos comentários que J. seria sua filha, e sendo o suposto pai teria o direito de ficar com a criança", bem como "que quer a criança porque futuramente ela vai ficar revoltada em saber que não está sendo criada pelos pais biológicos, a revolta também será ocasionada em saber que o pai (J. M.) não fez nada diante da situação" (fl. 150).
Quanto ao fato do recorrido ser caminhoneiro e de estar constantemente ausente do lar, este por si só não obsta o deferimento da guarda, pois segundo competente estudo social não houve prejudicialidade no relacionamento afetivo do apelado com sua outra filha. Ademais, conforme bem salientou o membro do Ministério Público de Primeiro Grau em seu parecer "o núcleo familiar paterno compõe-se, não apenas do genitor, mas também da avó, dois primos (menores de idade), uma imã, de 9 anos, bem como de dois tios. Assim, o genitor, embora viaje bastante, tem uma estrutura adequada à sua segunda filha" (fl. 198).
Desse modo, diante da realidade incontestável de que o apelado é o pai biológico da infante, possuindo condições de criá-la, e de que a mãe natural da menor J.C.M não quer ficar com a sua guarda, esta deve ser concedida ao requerente, pois demonstrou durante toda a instrução o real interesse no reconhecimento da paternidade.
A respeito, encontramos na jurisprudência pátria:
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PEDIDO DE GUARDA FEITO POR TERCEIRO. INTERESSE DA INFANTA A SER PRESERVADO. LIMINAR CONCEDIDA EM FAVOR DO PAI BIOLÓGICO. CARÊNCIA DE RECURSOS MATERIAIS. IRRELEVÂNCIA. PRECARIEDADE DA MEDIDA. EXEGESE DOS ARTS. 19, 23, 25 E 35 DO ECA. Somente em caráter excepcional é admitida a colocação em família substituta mediante a concessão de guarda a terceiro interessado, porquanto toda criança ou adolescente tem direito de ser criado e educado no seio da sua família natural, entendida esta como a comunidade formada pelos pais biológicos ou qualquer deles e seus descendentes, ex VI dos arts. 19 e 25 do ECA. Assim, é adequada a decisão judicial que, em sede de medida liminar, concede ao pai biológico a guarda provisória da sua filha, ainda mais porque ressalvou à pretende à guarda amplo e regular direito de convivência com a criança, atendendo da melhor forma aos interesses da infanta. A miséria ou a pobreza dos pais não justifica, por si só, a intervenção do Estado-juiz para a decretação da perda ou da suspensão do pátrio poder e, conseqüentemente, a colocação dos filhos em família substituta, de acordo com o art. 23 do ECA. A autoridade judiciária pode a qualquer tempo revogar a guarda, após ouvido o Ministério Público, com fundamento no art. 35 do ECA, contanto que a alteração dos fatos justifique a medida a ser adotada como forma de melhor atender aos interesses da criança ou adolescente, não se podendo, pois, falar em preclusão ou coisa julgada material. (TJSC, AI 2002.008939-2, Caçador, Segunda Câmara Cível, rel. Des. Luiz Carlos Freyesleben, j. em 8-8-2002).
APELAÇÃO CÍVEL. MENOR. FAMÍLIA SUBSTITUTA. PAIS BIOLÓGICOS. GUARDA. DISPUTA. PREFERÊNCIA. I - Mesmo que tenha sido entregue a família substituta, desde de tenra idade, o pai biológico tem preferência pela guarda dos filhos, para mantê-los em sua companhia, por força da própria Lei, que só admite a entrega a família substituta em situação excepcional. II - Não acarreta óbice ao deferimento da guarda ao pai, o fato da avo materna pretender manter os netos em sua companhia e deles cuidar, juntamente com este. Pode a avó exercer a guarda de fato dos netos com o consentimento paterno, decorrente do pátrio poder. A responsabilidade dos avós não é apenas sucessiva em relação a responsabilidade dos progenitores, mas também é complementar, para quando estes não estiverem em condições de arcar com as necessidades de seus descendentes, devendo-se considerar o seu exercício espontâneo. Apelo conhecido e provido. (TJGO, AC 62332-0/188, Proc.200200066492, Ipameri, Segunda Câmara Cível, rel. Des. Gilberto Marques Filho, j. em 18-2-2003, DJGO de 18-3-2003).
ECA. GUARDA. PAIS BIOLÓGICOS E FAMÍLIA SUBSTITUTA. PREFERÊNCIAL INTERESSE DO MENOR. Não é razoável postergar o exercício da guarda pelo pai biológico quando superados os óbices que a impediam, embora os cuidados que a família substituta dispensava. A mocidade paterna e sua situação financeira modesta não afastam o direito manifestado em ter consigo o descendente. Todavia, a transição deve ser mediada, para causar o menor dano ao desenvolvimento psicológico da criança, assegurando-se, para tanto, a inversão do direito de visita, que, então, passa aos atuais guardiães. Embargos infringentes acolhidos, por maioria, para inverter a guarda. (TJRS, Embargos Infringentes Nº 70002576734, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j. em 14-9-2001).
REVOGAÇÃO DE GUARDA. ART. 35, DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Evidenciada, pelos estudos técnicos realizados, a conveniência da devolução da guarda ao pai biológico do menor, agora com possibilidade de manter o fiho, revoga-se a anteriormente deferida aos avós maternos. Sentença mantida. (TJDF, APC 3924496, Ac. 88666, DF, Quarta Turma Cível, rel. Des. Mario Machado, j. em 5-8-1996, DJU 23-10-1996).
Eram essas as considerações necessárias para amparar o meu posicionamento, no sentido de reconhecer o direito da infante de ser criada e educada no seio de sua família, pelo seu pai biológico.
Fernando Carioni