O direito sucessório do cônjuge supérstite está condicionado à inexistência de separação. Tal é o que ressalta da redação do artigo 1.830 do novo Código Civil: "Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente". Aprofunde um pouco mais seus conhecimentos conferindo a aplicação do dispositivo legal alhures enumerado a um caso concreto, fazendo a leitura do v. acórdão abaixo transcrito, na qual ex-cônjuge pleiteava quantia referente à diferença remuneratória de dez por cento, devida por conta da antecipação de reajuste salarial concedida pela Lei nº 6.740/85.
Data: 19/10/2006
Acórdão: Apelação Cível n. 2006.004759-4, da Capital.
Relator: Des. Orli Rodrigues.
Data da decisão: 27.06.2006.
EMENTA: ADMINISTRATIVO - SERVIDORES PÚBLICOS DO PODER JUDICIÁRIO ESTADUAL - ANTECIPAÇÃO SALARIAL PARCELADA - DECISÃO ADMINISTRATIVA QUE INCORPOROU O REAJUSTE - VALORES PAGOS PARCELADAMENTE EM FOLHA DE PAGAMENTO - FALECIMENTO DO BENEFICIADO COM A INCORPORAÇÃO - RETENÇÃO DA QUANTIA PELO ENTE PÚBLICO - PRETENSÃO LIBERATÓRIA - CRÉDITO DE NATUREZA INDENIZATÓRIA - DIREITO DOS HERDEIROS - EX-CÔNJUGE SEM DIREITO SUCESSÓRIO - INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 1.830 DO CÓDIGO CIVIL - ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM - ARTIGO 267, VI, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - CONHECIMENTO DE OFÍCIO - POSSIBILIDADE - EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2006.004759-4, da comarca da Capital, em que é apelante Maria Elzira Correa, sendo apelado o Estado de Santa Catarina:
ACORDAM, em Segunda Câmara de Direito Público, por votação unânime, extinguir o processo, sem julgamento de mérito, forte no inciso VI do artigo 267 do Código de Processo Civil.
Custas na forma da lei.
RELATÓRIO
Na comarca da Capital, Maria Elzira Correa ajuizou ação de conhecimento em face do Estado de Santa Catarina, alegando ser viúva de Eugênio Garcia Neto, o qual, servidor do Poder Judiciário Estadual, era credor de quantia referente à diferença remuneratória de dez por cento, devida por conta da antecipação de reajuste salarial concedida pela Lei nº 6.740/85, que vinha sendo paga parcelada e mensalmente.
Aduziu que, com o falecimento de seu esposo, tais valores, usualmente quitados junto com seus proventos, deixaram de ser pagos, retendo-os o Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Requereu, assim, além dos pedidos de praxe, a liberação dos mesmos.
Devidamente citado, o réu contestou, rechaçando os argumentos expendidos pela autora.
Impugnada a resposta e colhido o parecer do Ministério Público de Primeiro Grau (fls. 75 a 77), o M.M. Juiz de Direito sentenciou o feito, julgando improcedente a lide, ao fundamento de que os atrasados vindicados foram incorporados pelo reajuste concedido pela Lei Estadual nº 6.747/86 e que, portanto, a eles a autora não tem direito.
Irresignada, apela a parte vencida aduzindo que não pretende nada além do que já foi reconhecido ao seu falecido cônjuge como de direito, por anterior decisão administrativa, e que como única beneficiária que é do extinto, tem direito à totalidade dos proventos que este percebia.
Contra-razões às fls. 97 a 113.
O parecer ministerial de fls. 118 e 119 deixou de manifestar-se sobre a lide, porque ausente seu interesse.
É o relatório.
VOTO
Trata-se de apelação cível interposta por Maria Elzira Correa em face da sentença que julgou improcedente o pedido inicial por si formulado, deixando de condenar o Estado à liberação dos valores relativos aos atrasados devidos por este a seu falecido esposo.
Postula a recorrente a liberação dos valores reconhecidamente devidos pela Administração Pública a seu falecido cônjuge, ao argumento de que é a sua única beneficiária.
Todavia, o direito não lhe pode ser deferido, porquanto ilegítima para figurar no pólo ativo da demanda.
Infere-se da certidão de óbito juntada à fl. 7, assim como do atestado emitido pelo IPESC de fl. 8, que a recorrente, em verdade, é ex-cônjuge do de cujus, e não viúva, conforme alega. Dessome-se, ademais, que a pensão que vem percebendo do IPESC lhe é paga na qualidade de dependente, "ex-esposa".
Findo o vínculo matrimonial que os unia, perdeu a recorrente a condição de herdeira que a capacitaria a pleitar direitos do de cujus que não lhes digam respeito. Tal é o que ressalta da redação do artigo 1.830 do novo Código Civil, aplicável ao caso, uma vez aberta a sucessão após a sua entrada em vigor (art. 1.844):
"Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente".
Deste modo, não sendo herdeira, nenhum direito, além do benefício previdenciário que já percebe, lhe pode ser deferido. E o direito ora pretendido não integra aquela benesse a que faz jus a parte autora, uma vez que de natureza diversa da mesma.
Com efeito, é pacífico tanto em doutrina quanto em jurisprudência, que os valores relativos a salários atrasados perdem a natureza originariamente salarial para adquirirem natureza indenizatória. Tal se deve ao fato de que, passada a urgência que o salário reclama, não tem mais sentido que se confira a referidos valores aquela natureza. Visam eles, neste momento, não mais servir de sustento aos credores, mas sim recompor-lhes as perdas a que se sujeitaram por conta do atraso no pagamento.
Nesse esteio, manifesta-se a jurisprudência do STJ:
"O valor de conversão dos vencimentos de Servidor Público em URV's deixa de ser verba alimentar quando em atraso, caracterizando verba indenizatória e, por isso, os juros moratórios devem incidir a partir da citação". (AI nº 724.222/MS (2005/0195421-6), rel. Min. Gilson Dipp).
No mesmo norte, a deste Pretório:
"5. De acordo com a jurisprudência, anulado o ato de demissão do servidor público, como corolário lógico deve ele ser reintegrado no cargo, assegurado-lhe o direito aos vencimentos atrasados.
"A toda evidência, os 'vencimentos atrasados' são devidos a título de recomposição das perdas; têm natureza indenizatória [..] A solução preconizada está calcada, repito, na premissa de que os vencimentos atrasados têm natureza indenizatória, constituindo recomposição das perdas". (Ap. Cív. nº 2000.008770-0, rel. Des. Newton Trisotto) (destacou-se).
Ainda nesse sentido: Ap. Cív. nº 2004.023262-4, rel. Des. Jaime Ramos; Ap. Cív. nº 2000.012841-4, rel. Des. Newton Trisotto, Ap. Cív. nº 1997.003795-3, rel. Des. Luiz Cézar Medeiros.
De ver-se, assim, que a natureza dos créditos ora reclamados é indenizatória, e não salarial, como a benesse a que a autora faz jus. E como verba de caráter indenizatório de que trata, passa a pertencer, com o falecimento do credor, após o devido processamento do inventário - do qual, aliás, não se tem notícia nos autos - a seus herdeiros.
Viu-se, no entanto, que a ora recorrente, nos termos do artigo 1.830 do Código Civil, não detém esta qualidade, de maneira que, se não a detém, não há como a considerar legítima para litigar pelos créditos em questão. Em outras palavras, a apelante, não sendo herdeira, não tem direito postular em juízo pela indenização e, portanto, muito menos o tem de recebê-la.
Aliás, ainda que herdeira, faleceria à apelante legitimidade ativa, vez que postula em nome próprio algo que só poderia ser pleiteado pelo espólio do de cujus, através de inventariante legalmente constituído, conforme determina o disposto no artigo 12, V, do CPC.
Veja-se, a propósito, a jurisprudência:
"...PLEITO FORMULADO POR HERDEIRO - ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM - ART 1.0l7 DO CPC - RECURSO ACOLHIDO.
"Ex vi do art. 12. item V, do CPC, o espólio é parte em sentido formal, podendo residir ativa e passivamente em juízo.
"Salvo quando autorizado por lei, hipótese incabível na espécie, ninguém pode argüir, em nome próprio, direito alheio.
"lpso facto, é vedado ao herdeiro requerer direito cuja legitimidade ad causam é do espólio" (Ap. Cív. n. 39.565, de São Francisco do Sul, publicada no DJ em 8.3.93).
Nos termos dos artigos 988 e 989 do CPC, doutra banda, o ex-cônjuge não tem sequer legitimidade para requerer a abertura do inventário. Assim, por maioria de razão, não a terá para postular para si direito que, como visto, não lhe pertence.
Nem se há de argumentar, finalmente, a impossibilidade de se reconhecer de ofício ou em segundo grau a ilegitimidade ativa, pois o tema é pacífico e não exige maiores digressões.
Nesse sentido:
"ILEGITIMIDADE DAS PARTES - CONDIÇÃO DA AÇÃO - RECONHECIMENTO EX OFFICIO PELO MAGISTRADO - POSSIBILIDADE". (AI nº 2004.028044-2, rel. Des. Sérgio Roberto Baasch Luz).
"Possibilidade de exame, de ofício, de falta de condição da ação no segundo grau de jurisdição, mormente em se tratando de sentença sujeita ao duplo grau (art. 475, II do CPC)" (Ap. Cív. nº 1997.004818-1, rel. Des. João José Schaefer).
Desta feita, constatada a ilegitimidade da parte autora, extingue-se o processo, sem julgamento de mérito, a teor do artigo 267, VI, do Código de Processo Civil.
DECISÃO
Nos termos do voto relator, a Câmara, após debates, decidiu, por votação unânime, extinguir o processo sem julgamento de mérito, em razão de ilegitimidade ativa ad causam (art. 267, VI, CPC).
Do julgamento presidido pelo Exmo. Sr. Desembargador Francisco Oliveira Filho, participou, com voto vencedor o Exmo. Sr. Desembargador Cid José Goulart Júnior.
Pela douta Procuradoria-Geral de Justiça, lavrou parecer o eminente Sr. Dr. Francisco José Fabiano.
Florianópolis, 27 de junho de 2006.
Des. Francisco Oliveira Filho
PRESIDENTE, COM VOTO
Des. Orli Rodrigues
RELATOR