A legitimidade ativa ad causam no tocante às ações negatórias de paternidade é privativa do marido e, excepcionalmente, dos herdeiros, se aquele é incapaz, ou na condição de substitutos processuais ante o falecimento daquele no curso do processo, não podendo, assim, ser proposta por terceiro que se declarou registralmente como pai biológico. Não bastasse a falta de legitimidade, há também a impossibilidade jurídica do pedido, ante os diversos dispositivos legais que estabelecem a irrevogabilidade do reconhecimento de filiação. Confira mais uma importante decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, prolatada pela sua Terceira Câmara de Direito Civil, reconhecendo que a paternidade socioafetiva entre o pai registral e o menor, prevalece sobre a paternidade biológica. Este v. acórdão é da autoria do ilustre Desembargador Marcus Tulio Sartorato e está fundamentado em inúmeros dispositivos do Novo Código Civil, apoiado, ainda, em ampla e farta doutrina e jurisprudência, sendo, via de conseqüência, muito oportuno a sua leitura.
Data: 25/05/2006
Acórdão: Apelação Cível n. 2005.014014-1, de Anita Garibaldi.
Relator: Des. Marcus Tulio Sartorato.
Data da decisão: 16.12.2005.
Publicação: DJSC n. 11.839, edição de 07.02.2006, p. 17.
EMENTA: DIREITO DE FAMÍLIA – AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – DEMANDA MOVIDA POR TERCEIRO – ILEGITIMIDADE – EXAME DE DNA QUE EXCLUI O ESTADO DE FILIAÇÃO – IRRELEVÂNCIA NA HIPÓTESE – RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO, VOLUNTÁRIO E IRRESPONSÁVEL DA PATERNIDADE – ATITUDE QUE EM PRINCÍPIO APARENTA GESTO DE NOBREZA E QUE POSTERIORMENTE, ANTE A FRUSTRAÇÃO DO RELACIONAMENTO MANTIDO COM A GENITORA DO MENOR, TRANSFORMA-SE EM DESASTRE PARA O INFANTE – COMPORTAMENTO QUE DEVE SER DESESTIMULADO EM HOMENAGEM AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL ESTATUÍDOS NO ART. 226, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO – IRREVOGABILIDADE DO ATO – INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 1º DA LEI 8.560/92 E 1.609 E 1.610 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 – RECURSO PROVIDO
1. É um contra-senso pretender-se a busca da verdade real, com arrimo em exame pericial do DNA, quando o próprio interessado fez questão de esconder a dita verdade e, ipso facto, declarar espontânea e voluntariamente uma falsa paternidade, sem sopesar as conseqüências que poderiam advir para si e, sobretudo, para o menor.
No confronto de tais interesses, há que prevalecer o da criança, porquanto inserido numa realidade sócio-afetiva sem ter o direito nem sequer de opinar. É que, "na aplicação da lei, a proteção aos interesses do menor sobrelevará qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado" (REsp n.º 4.987, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira).
2. O Poder Judiciário, através de suas decisões, não deve estimular tais atitudes, eis que absolutamente irresponsáveis e sustentadas, na maioria das vezes, em interesses pessoais de quem confirma falsamente a paternidade.
3. "Não configura motivo de nobreza se o agente registra a filha em seu nome enquanto convivia com a mãe, ingressando com ação negatória de paternidade ao separar-se" (TJRS, AC n.º 70006332209, Desª Elba Aparecida Nicolli Bastos, julg. em 30.9.2004).
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n.. 2005.014014-1, da Comarca de Anita Garibaldi (Vara Cível e Criminal), em que é apelante L. G. B., representado por sua mãe, A. dos A. G., e apelado C. B.:
ACORDAM, em Terceira Câmara de Direito Civil, por votação unânime, conhecer do recurso e dar-lhe provimento.
Custas na forma da lei
I – RELATÓRIO:
Adotando o relatório da sentença recorrida que é visualizado à fl. 47, por revelar com transparência o que existe nestes autos, a ele acrescenta-se que o MM. Juiz a quo julgou procedente o pedido para declarar que o autor não é o pai biológico do menor réu e determinar a exclusão no registro de nascimento dos nomes do autor e de seus pais, ali inseridos na condição de avós paternos.
Desta decisão recorreu o réu, sustentando em seu prol que o reconhecimento de sua paternidade por parte do autor se deu de maneira espontânea e voluntária. Sustentou igualmente que sempre teve o autor como seu pai e que, em decorrência desta paternidade, arcava ele com alimentos, verba que obteve numa ação de alimentos. Sustentou também que o requerente somente aforou a presente ação depois de ter que responder a ações de execução dos débitos alimentícios ajuizados. Sustentou ainda que se estabeleceu ao longo dos seus quatro anos uma relação sócio-afetiva entre si, seus familiares e o autor.
O autor ofertou contra-razões pela manutenção da sentença recorrida.
Os autos ascenderam a esta Corte de Justiça sem pronunciamento do representante do Ministério Público de primeiro grau de jurisdição.
A douta Procuradoria-Geral de Justiça sugeriu o conhecimento e provimento do recurso.
II – VOTO:
Merece reparo, inequivocamente, a decisão hostilizada.
Numa leitura perfunctória da exordial, verifica-se que o autor alegou ter comparecido em cartório e reconhecido a paternidade do menor L. G. B., ao qual vem pagando pensão alimentícia. Igualmente alegou que "está em dúvida se realmente o menor é seu filho", motivo porque pretendia fazer o exame do DNA.
Vê-se pois que a pretensão do autor, pois, não está calcada nos vícios do consentimento, tais como erro e coação, por exemplo, insculpidos nos arts. 86 e 98 do Código Civil/1916 e 138 do Código Civil/2002.
Inicialmente, há que serem analisadas as condições da ação, insculpidas no art. 267, VI, do Código de Processo Civil, em especial a legitimidade ativa do autor e a possibilidade jurídica do pedido.
Como o objetivo do autor é simplesmente ver declarado que não é o pai biológico do menor L. G. B., é de fácil conclusão que não tem ele legitimidade para tanto. Basta que se reveja o que está estatuído nos arts. 344 do Código Civil/1916 e 1.601 do Código Civil/02:
"Art. 344. Cabe privativamente ao marido o direito de contestar a legitimidade dos filhos nascidos de sua mulher."
"Art. 1.601. Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher..."
Nesse rumo vem se posicionando a melhor orientação doutrinária:
"A presunção de paternidade não é juris et de jure ou absoluta, mas juris tantum ou relativa, no que concerne ao pai, que pode elidi-la provando o contrário. Essa ação negatória de paternidade é de ordem pessoal, sendo privativa do marido, pois só ele tem legitimatio ad causam para propô-la (CC, art. 1.601, caput; RF, 195:243) a qualquer tempo; mas se, porventura, falecer na pendência da lide, a seus herdeiros será lícito continuá-la (CC, art. 1.601, parágrafo único). Contudo, o marido não pode contestar a paternidade ao seu alvedrio; terá de mover ação judicial, provando uma das circunstâncias taxativamente enumeradas em lei (CC, arts. 1.599, 1.600, 1.602 e 1.597, V, in fine)..." (Diniz, M. H. Curso de direito civil brasileiro, v. 5, pp. 387/388).
Continuando:
"A paternidade jurídica é imposta por presunção (CC, art. 1.597, I a IV), pouco importando se o marido é ou não o responsável pela gestação, despreza-se a verdade real para atender à necessidade de estabilização social e de proteção ao direito à filiação, mas se outorga ao pai o direito de propor a negatória, havendo suspeita de que o filho não é seu, a qualquer tempo (CC, art. 1.601), ou após exame de DNA..." (ob. cit., p. 390, o grifo é meu).
Da jurisprudência colho os seguintes julgados:
"APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ILEGITIMIDADE ATIVA. A ação negatória de paternidade é privativa do marido (art. 344 do Código Civil de 1916). Não tem a sucessão do pai registral legitimidade e interesse processual para a propositura da ação. O sistema jurídico brasileiro não agasalha a pretensão da sucessão/apelante que visa uma sentença declaratória negativa, sem que exista uma relação jurídica a ser tutelada. Precedentes. Apelação desprovida" (Apelação Cível n.º 70008314197, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 29/04/2004).
"AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE FILIAÇÃO LEGÍTIMA COM VERDADEIRO CARÁTER DE NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ILEGITIMIDADE ATIVA. AÇÃO PERSONALÍSSIMA. NÃO APLICAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 348, DO CÓDIGO CIVIL. A ação negatória de paternidade é de caráter personalíssimo, de modo que só tem legitimidade para ajuizá-la o próprio pai ou filho cuja paternidade é contestada. Terceiro alheio a essa relação paternal não detém essa legitimidade, não podendo, por conseqüência, figurar no pólo ativo de demanda dessa espécie. O disposto no art. 348, do CC, aplicado-se no caso de negativa de existência de filiação legítima baseada em falsidade ideológica do registro de nascimento, que são as chamada "adoções à brasileira" ou no caso de impugnação, a princípio, da filiação materna, podendo ser proposta por qualquer interessado. No entanto, na existência de maternidade certa, como é o caso dos autos, a negatória de paternidade é privativa do marido, aplicando-se, o disposto nos art. 344 e 345. No caso vertente, apesar da autora afirmar que não pretende discutir a paternidade atribuída ao seu falecido pai, requer que seja anulado dados do registro de nascimento da ré por vício insanável de falsidade ideológica, apontando, no entanto, como único dado falso no assento justamente o reconhecimento da paternidade. O que a autora requer na realidade é a anulação do reconhecimento da paternidade e não o disposto no art. 348, do CC, caracterizando sua ilegitimidade ativa." (AC n.º 2001.019429-5, Des. Carlos Prudêncio, o grifo é meu).
"AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE FILIAÇÃO LEGÍTIMA C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL – ALEGAÇÃO DE FALSIDADE IDEOLÓGICA – ILEGITIMIDADE ATIVA – AÇÃO PERSONALÍSSIMA – INAPLICABILIDADE DO DISPOSTO NO ART. 348, DO CC DE 1916. RECURSO DESPROVIDO. "O registro civil prova o nascimento e estabelece presunção de verdade em favor de suas declarações. Ninguém será admitido a impugnar-lhe a veracidade; seu conteúdo impregna-se de fé pública, a menos que tenha ocorrido erro ou falsidade do registro." (Des. Cláudio Barreto Dutra). Por seu caráter personalíssimo, somente têm legitimidade para ajuizar ação negatória de paternidade, o próprio pai ou o filho que tem sua paternidade contestada, aplicando-se o disposto nos art. 344 e 345 do CC de 1916. O que denota a ilegitimidade ativa da autora é a busca pela anulação do reconhecimento da paternidade e não o que preceitua o art. 348 do mesmo Código" (AC n.º 2001.019400-7, Des. Dionísio Jenczak, o grifo é meu).
Diante deste contexto, forçoso é concluir que a legitimidade ativa ad causam no tocante às ações negatórias de paternidade é privativa do marido e, excepcionalmente, dos herdeiros, se este é incapaz, ou na condição de substitutos processuais ante o falecimento daquele no curso do processo.
E como na hipótese a ação em exame foi proposta por terceiro que se declarou registralmente como pai biológico do menor, ora réu, inegavelmente não tinha o autor legitimidade para tanto.
Não fosse este particular que fulmina de vez este processo, outro de igual conseqüência se verifica, qual seja, a impossibilidade jurídica do pedido.
Com efeito, diversos são os dispositivos legais que estabelecem a irrevogabilidade do reconhecimento de filiação, dentre os quais é de se chamar à atenção para os seguintes:
Lei n.º 8.560/92
"Art. 1º O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito:.."
Código Civil/2002
"Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito:
I – no registro de nascimento;
Art. 1.610. O reconhecimento não pode ser revogado, ..." (sem grifos no original).
Acerca deste particular, da doutrina extrai-se que:
"Uma vez declarada a vontade de reconhecer, o ato passa a ser irretratável ou irrevogável, inclusive se feito em testamento (CC, art. 1.610), por implicar uma confissão de paternidade ou maternidade (RT, 371:96), apesar de poder via a ser anulado ou inquinado de vício de vontade como erro, coação (AJ, 97:145) ou se não observar certas formalidades legais. A irrevogabilidade do reconhecimento (CC,art. 1.610) não impede, portanto, sua anulação por vício de consentimento social. E, pelo art. 1.604, a irrevogabilidade do reconhecimento não constituirá, ainda, obstáculo à declaração de sua invalidade diante de erro ou de falsidade do registro" (Diniz, M. H. Curso de direito civil brasileiro, v. 5, p. 401).
Mas admitindo-se, somente para argumentar, que fosse possível a revogabilidade do reconhecimento de paternidade, esta por certo conflitaria com o disposto na Carta Magna, eis que, fazendo alusão ao princípio da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, é assegurado à criança o direito à dignidade e ao respeito (art. 1º., inciso III, 226, § 7º, e 227).
Para melhor compreensão, destaco-os:
"Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – [...];
II – [...];
III – a dignidade da pessoa humana;"
"Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...]
§ 7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas."
"Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."
A propósito, sobre este instituto ensina Ingo Wolfgang Sarlete que é "a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos" (Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 60).
Relembre-se, neste momento, por igualmente oportuno, as palavras do preclaro Juiz de Direito do Rio de Janeiro Mauro Nicolau Junior acerca da dignidade de uma criança, verbis:
"A dignidade de uma criança fundamenta-se no amor, no respeito e no carinho a ela dedicados" (Revista Brasileira de Direito de Família n.º 21 – DEZ-JAN/2004, p. 113).
E será que o comportamento do autor nestes autos revela amor e respeito para com a criança cuja paternidade quer se desvincular de um instante para outro? Certamente que não.
Não há dúvida que na hipótese em exame o princípio da dignidade da pessoa humana, particularmente do menor L. G. B., estaria sendo vilipendiado com o resultado pretendido na inicial, retirando do referido menor um de seus atributos pessoais, qual seja, a filiação com relação ao autor, que, diga-se de passagem, teve significativa publicidade nestes quase 4 (quatro) anos de vida do infante.
É claro que toda criança tem o legítimo interesse de saber a verdade sobre sua paternidade. Todavia, deve-se permitir que a própria criança decida o momento oportuno para tanto.
Logo, não se concebe que o pai registral, com base neste postulado, venha a juízo para desconstituir a paternidade que declarou de livre e espontânea vontade, sem levantar qualquer dúvida.
Ademais, é um contra-senso pretender-se a busca da verdade real, com arrimo em exame pericial do DNA, quando o próprio interessado fez questão de esconder a dita verdade e, ipso facto, declarar, espontânea e voluntariamente, uma falsa paternidade sem sopesar as conseqüências que poderiam advir para si e, sobretudo, para o menor. A prudência recomenda que, em casos como este retratado nos autos, ao se estabelecer o confronto de tais interesses, mais precisamente o do terceiro que promoveu falsa auto-atribuição de paternidade, e do menor, deva prevalecer o segundo, eis que inserido numa realidade sócio-afetiva, sem ter o direito sequer de opinar.
Por isso, sem embargo da força dos argumentos em contrário, entendo que nem mesmo sob o manto da decantada "busca da verdade real" se justifica a prática de qualquer violência contra um menor.
Urge, pois, que o Poder Judiciário, como ente estatal, legitimado que está pelo art. 1º., III, da Carta Magna, atue através de suas decisões desestimulando tais atitudes, até porque absolutamente irresponsáveis, sustentada, na maioria das vezes, em interesses pessoais, como por exemplo dinheiro, ideais e paixões daquele que confirma uma paternidade.
Com isto, por evidente, não se pretende afastar a possibilidade de o próprio menor, como titular de um direito personalíssimo indisponível ou o verdadeiro pai biológico, com sustentáculo nos vícios do consentimento (erro, coação ou falsidade), compareçam em juízo se valendo de todos os meios de provas permitidas em direito, em especial o denominado eficiente, seguro e conclusivo exame do DNA, para buscar a anulação do reconhecimento voluntário de paternidade promovido por um terceiro, inconseqüente ou não.
Nesta hipótese, a bem da verdade os interesses do menor e do verdadeiro pai biológico são convergentes, não se vislumbrando qualquer vilipêndio à dignidade e ao respeito de qualquer um destes.
Aliás, os julgados utilizados por muitos para justificar a possibilidade jurídica do pedido negatório de paternidade, com arrimo nas profundas modificações sociais (inovações sociais) e avanços da ciência, dizem respeito "ao marido" e ao próprio menor, em consonância com a legislação vigente à época, senão vejamos:
"NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. DECLARAÇÃO FALSA NO REGISTRO DE FILIAÇÃO. PEDIDO DE DESCONSTITUIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. MÁ-FÉ. SUCUMBÊNCIA. 1. Se o autor reconheceu formalmente o infante, sendo sabedor da inexistência do liame biológico, mas deixando evidenciada a situação de paternidade socioafetiva, não pode pretender a desconstituição do vínculo, pretensão esta que se confunde com pedido de revogação. Vedação dos art. 1.609 e 1.610 do Novo Código Civil (e, também, do art. 1º da Lei n.º 8.560/92). 2. A litigância de má-fé não ficou evidenciada tendo as partes estabelecido o debate judicial de suas pretensões de forma leal. 3. Os honorários advocatícios foram corretamente arbitrados tendo em mira a relevância da causa e o trabalho profissional desenvolvido. Recursos principal e adesivo desprovidos" (TJRS, AC n.º 70008712283, Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julg. em 30.6.2004).
"APELAÇÃO CÍVEL. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA. Não apontando o autor da negatória de paternidade, nulidade (art. 166 do CC/02) no registro de nascimento da ré, tampouco qualquer vício de consentimento (art. 171, II, CC/02), ao proceder ao ato registral e declarar a paternidade da ré, seu pedido é juridicamente impossível. Apelação desprovida, por maioria" (TJRS, AC n.º 70011761863, Des. José Ataídes Siqueira Trindade, julg. em 16.6.2005).
"NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DE REGISTRO. IMPOSSIBILIDADE. ADOÇÃO AFETIVA. Narrativa da petição inicial demonstra a existência de relação parental. Sendo a filiação um estado social, comprovado estado de filho afetivo, não se justifica a anulação de registro de nascimento por nele não constar o nome do pai biológico e sim o do pai que desempenhou a função parental. Reconhecimento da paternidade que se deu de forma regular, livre e consciente, mostrando-se a revogação juridicamente impossível. NEGADO PROVIMENTO AO APELO" (TJRS, AC n.º 70012565388, Desª Maria Berenice Dias, julg. em 14.9.2005).
"APELAÇÃO CÍVEL. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE, ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. AO ASSUMIR A PATERNIDADE DO FILHO DE SUA EX-COMPANHEIRA, FALSEANDO COM A VERDADE REGISTRAL, ASSUMIU TODOS OS DEVERES INERENTES À PATERNIDADE. PRÁTICA DE `ADOÇÃO À BRASILEIRA¿, QUE, COMO TAL, CARACTERIZA-SE PELA IRREVOGABILIDADE. RECURSO DESPROVIDO." VOTO VENCIDO (TJRS, AC n.º 70006440002, Des. Alfredo Guilherme Englert, julg. em 18.9.2003).
"NEGATÓRIA DE PATERNIDADE ADOÇÃO À BRASILEIRA. Havendo o varão registrado como filho quem sabia não o ser, impossível o uso desta ação, uma vez que tal ato se equipara a verdadeira adoção, que é irrevogável. Embargos desacolhidos" (SEGREDO DE JUSTIÇA) (TJRS, EI n.º 70006617468, Desª Maria Berenice Dias, julg. em 14.11.2003).
"NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. DECLARAÇÃO FALSA NO REGISTRO DE FILIAÇÃO. DESCONSTITUIÇÃO DO REGISTRO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Se o autor reconheceu formalmente o infante, sendo sabedor da inexistência do liame biológico, mas deixando evidenciada a situação de paternidade socioafetiva, não pode pretender a desconstituição do vínculo, pretensão esta que se confunde com pedido de revogação. Vedação dos art. 1.609 e 1.610 do Novo Código Civil (e, também, do art. 1º da Lei n.º 8.560/92). Recurso desprovido." (TJRS, AC n.º 70007470297, Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julg. em 10.12.2003).
"APELAÇÃO. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE CUMULADA COM ANULAÇÃO DE ATO JURÍDICO. Em que pese ser outro o nome da ação proposta, o autor renova a pretensão de direito material anteriormente buscada, qual seja a exclusão da relação jurídica de parentalidade e filiação que se estabeleceu entre ele e o recorrido com o registro de nascimento por ele levado a efeito. Não basta a simples alegação de que sua manifestação de vontade estava comprometida pelas ameaças de familiares da genitora do demandado para autorizar a anulação do reconhecimento efetuado. Nos termos do inciso I do art. 1.609 e do art. 1.610 do CCB é irrevogável o reconhecimento dos filhos extramatrimoniais feito no registro do nascimento. Além do mais, a paternidade é muito mais que um evento meramente biológico, é um fenômeno social e o filho não é algo descartável, que se assume em certo momento para ser dispensado quando entender conveniente. À UNANIMIDADE, NEGARAM PROVIMENTO" (TJRS, AC n.º 70007580178, Des. Luiz Felipe Brasil Santos, julg. em 17.12.2003).
"AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PREVALÊNCIA. Estabelecida a paternidade socioafetiva entre o autor (pai registral) e o réu, descabe a negatória da paternidade porque aquela deve prevalecer sobre a paternidade biológica. Precedentes doutrinários e jurisprudenciais. Apelação desprovida, por maioria" (TJRS, AC n.º 70007514243, Des. José Ataídes Siqueira Trindade, julg. em 18.12.2003)
"APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE CUMULADA COM EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. ADOÇÃO À BRASILEIRA. O reconhecimento espontâneo da paternidade daquele que, mesmo sabendo não ser o pai biológico, registra como seu o filho da sua companheira, tipifica verdadeira adoção, irrevogável, descabendo, posteriormente, a pretensão anulatória de tal registro, por não demonstrado vício de consentimento. Improcedência da ação mantida. Apelação desprovida" (TJRS, AC n.º 70008096562, Des. José Ataídes Siqueira Trindade, julg. em 22.04.2004)
No mesmo rumo, vem decidindo este egrégio Tribunal de Justiça:
"EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL – ERRO MATERIAL – PREQUESTIONAMENTO – VÍCIO DE CONSENTIMENTO NA MODALIDADE ERRO – FALSIDADE DE REGISTRO – APLICABILIDADE DA LEI n.º 8.560/92 – MATÉRIAS AMPLAMENTE DISCUTIDAS NO ACÓRDÃO EMBARGADO – EMBARGOS REJEITADOS. Não há vício de consentimento, na modalidade erro, quando a parte, voluntária e conscientemente, registra filho de outrem como se seu fosse. A falsidade de registro de nascimento não pode ser invocada pela parte que a deu causa conscientemente. A aplicabilidade do art. 1º da Lei n.º 8.560/92 é extensiva não só aos filhos havidos fora do casamento, como a todos os outros registrados voluntariamente, salvo quanto às exceções do art. 348 do CC" (EDAC n.º 2002.010522-3, da Capital. Des. Wilson Augusto do Nascimento).
"APELAÇÃO CÍVEL – NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO ATRAVÉS DO REGISTRO CIVIL DO INFANTE – ANULAÇÃO – ATO JURÍDICO IRREVOGÁVEL – EXEGESE DO ART. 1º DA LEI n.º 8.560/92 – EXTINÇÃO DO FEITO – IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – SENTENÇA REFORMADA
O pedido formulado na inicial encontra óbice intransponível no art. 1º da Lei n.º 8.560/92 que veda a revogação do reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento.
Tal dispositivo tem como finalidade assegurar a estabilidade das relações entre pais e filhos, voltado ao bem-estar destes. Afinal de contas, não se pode olvidar o abalo anímico e psíquico que poderia advir da revogação do reconhecimento da paternidade, sabendo-se que "na aplicação da lei, a proteção aos interesses do menor sobrelevará qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado" (Ministro Sálvio de Figueiredo, Resp. 4.987-RJ) (AC n.º 2002.015445-3, de Chapecó. Des. José Volpato de Souza).
"APELAÇÃO CÍVEL – NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO ATRAVÉS DO REGISTRO CIVIL DO INFANTE – ANULAÇÃO – ATO JURÍDICO IRREVOGÁVEL – EXEGESE DO ART. 1º DA LEI n.º 8.560/92 – EXTINÇÃO DO FEITO – IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO – SENTENÇA CONFIRMADA." (AC n.º 2002.018546-4, de Caçador. Des. José Volpato de Souza).
Diante deste contexto, não há como se aplaudir a atitude do autor e, muito menos, como se acolher o nefasto pleito exordial.
Ante o exposto, impõe-se o conhecimento e provimento do recurso para reformar a decisão recorrida e julgar extinto o processo, sem julgamento de mérito, por falta de condições da ação – legitimidade de parte e possibilidade jurídica do pedido –, com fulcro no art. 267, VI, do Código de Processo Civil.
III – DECISÃO:
Nos termos do voto do relator, decidiu a Câmara, por votação unânime, conhecer do recurso e dar-lhe provimento.
Participou do julgamento o Excelentíssimo Senhor Desembargador Sérgio Izidoro Heil.
Pela douta Procuradoria-Geral de Justiça lavrou parecer o Excelentíssimo Senhor Procurador de Justiça Tycho Brahe Fernandes.
Florianópolis, 16 de dezembro de 2005.
Wilson Augusto do Nascimento
PRESIDENTE COM VOTO
Marcus Tulio Sartorato
RELATOR