Cristiano Imhof

CÓDIGO CIVIL INTERPRETADO

Cristiano Imhof tooltip

Precisa de ajuda?

Ligue +55 47 3361-6454

contato@booklaw.com.br

Jurisreferência™

STJ. Hipoteca. Art. 1.488 do CC/2002(sem correspondência no CC/1916). Interpretação. A disposição introduzida no art. 1.488 do novo Código Civil veio amparar a boa fé desses adquirentes criando uma exceção à regra da oponibilidade erga omnes da hipoteca (art. 1.419, do CC⁄02). Essa exceção se justifica exatamente por ser, no plano fático, excepcional a própria hipótese regulada pela norma. É já cediça a compreensão, tanto pela doutrina, como pela jurisprudência, de que a única maneira de se otimizar a realização do princípio da igualdade é mediante o reconhecimento de que, em algumas situações, os sujeitos de uma relação jurídica não se encontram em posição similar. Nesses casos, em que as circunstâncias de fato provocam um desequilíbrio, tratar esses sujeitos de maneira objetivamente igual não basta para a plena realização do princípio da isonomia. É necessário reequilibrar os pólos da relação, estabelecendo regras excepcionais que tutelem a parte mais frágil. Promove-se, com isso - sempre nos termos estritos da lei - a igualdade substancial entre as partes, em detrimento da mera igualdade formal - que, em última análise, é apenas uma roupagem diferente para o arbítrio.

Data: 28/04/2008

Acórdão: Recurso Especial n. 691.738 - SC (2004⁄0133627-7).
Relator: Min. Nancy Andrighi.
Data da decisão: 12.05.2005.


RECORRENTE : ADMINISTRAÇÃO, CONSTRUÇÃO E INCORPORAÇÕES DE IMÓVEIS LTDA - SANT'ANA
ADVOGADO : EVERALDO LUÍS RESTANHO E OUTRO
RECORRIDO : BESC S⁄A CRÉDITO IMOBILIÁRIO
ADVOGADO : IVO MULLER

EMENTA: RECURSO ESPECIAL.. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. IMPUGNAÇÃO EXCLUSIVAMENTE AOS DISPOSITIVOS DE DIREITO MATERIAL. POSSIBILIDADE. FRACIONAMENTO DE HIPOTECA. ART. 1488 DO CC⁄02. APLICABILIDADE AOS CONTRATOS EM CURSO. INTELIGÊNCIA DO ART. 2035 DO CC⁄02. APLICAÇÃO DO PRINCIPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS.
- Se não há ofensa direta à legislação processual na decisão do Tribunal que revoga tutela antecipadamente concedida pelo Juízo de Primeiro Grau, é possível a interposição de Recurso Especial mencionando exclusivamente a violação dos dispositivos de direito material que deram fundamento à decisão..
- O art. 1488 do CC⁄02, que regula a possibilidade de fracionamento de hipoteca, consubstancia uma das hipóteses de materialização do princípio da função social dos contratos, aplicando-se, portanto, imediatamente às relações jurídicas em curso, nos termos do art. 2035 do CC⁄02.
- Não cabe aplicar a multa do art. 538, § único, do CPC, nas hipóteses em que há omissão no acórdão recorrido, ainda que tal omissão não implique a nulidade do aresto.
- Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por maioria, conhecer em parte do recurso especial e, nessa parte, dar-lhe provimento. Votou vencido o Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito. Os Srs. Ministros Castro Filho e Humberto Gomes de Barros votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro.
Sustentou oralmente o Dr. Túlio Kavalazi Filho, pelo recorrente.

Brasília (DF), 12 de maio de 2005(data do julgamento).

MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Presidente e Relatora

RECURSO ESPECIAL Nº 691.738 - SC (2004⁄0133627-7)

RELATÓRIO

RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator) :

Cuida-se do recurso especial interposto por ADMINISTRAÇÃO, CONSTRUÇÃO E INCORPORAÇÕES DE IMÓVEIS LTDA, com fundamento na alínea "a" do permissivo constitucional.
A recorrente celebrou contrato de mútuo com BESC S⁄A CRÉDITO IMOBILIÁRIO, ora recorrido, oferecendo em garantia hipotecária o imóvel denominado Edifício Residencial Paola. Posteriormente, alienou a terceiros as respectivas unidades habitacionais autônomas.
Ação: de conhecimento com pedido de antecipação de tutela ajuizada pela recorrente em desfavor do recorrido, objetivando, em síntese, o fracionamento da hipoteca incidente sob o imóvel para que cada unidade autônoma fosse gravada em valor proporcional ao crédito.
Alegou que existem várias ações de adjudicação compulsória ajuizadas por terceiros adquirentes das unidades habitacionais, nas quais foi formulado pedido antecipatório de levantamento de hipoteca, sob pena de multa diária de R$ 500,00 (quinhentos reais).
Ao final, sustentou que o fracionamento da hipoteca permitirá o resgate das unidades autônomas, "principalmente nos casos em que a recorrente está obrigada a outorgar escritura definitiva".
Decisão interlocutória: concedeu, nos seguintes termos, a tutela antecipada pleiteada:

"Defiro a antecipada para ordenar a divisão da garantia hipotecária incidente nas unidades habitacionais, box de garagem e lojas comerciais do Edifício Residencial Pala, devendo cada unidade permanecer gravada em montante proporcional apurado a partir do valor atualizado de avaliação das unidades individualmente e o crédito. Autorizo a consignação incidental do valor identificado na planilha II anexada com a exordial para cada unidade autônoma, com vistas ao levantamento da garantia hipotecária de cada imóvel respectivamente".

Acórdão: deu provimento ao agravo de instrumento interposto pelo recorrido para cassar a decisão concessiva da tutela antecipada, por considerar inaplicável o art. 1.488 do Novo Código Civil, que permite o fracionamento da hipoteca, ao contrato de mútuo em exame, haja vista celebração sob a vigência do Código Civil de 1916. Ainda, foi ressaltado que inexiste perigo da demora, considerando o fato da recorrente conhecer a impossibilidade de alienar as referidas unidades habitacionais.
Embargos de declaração: rejeitados, com aplicação de multa de 1% sobre o valor da causa por considerar o recurso protelatório e outra multa equivalente por litigância de má-fé.
Recurso especial: alegou a recorrente, em síntese:
a) violação ao art. 535 do CPC;
b) ofensa aos arts. 2.035 e 1.488 do Novo Código Civil, sustentando a possibilidade de aplicar os dispositivos do CC⁄2002 aos efeitos do negócio jurídico celebrado entre as partes na vigência do CC⁄16;
c) existência de periculum in mora, consubstanciado na possibilidade de "sucumbir ao pagamento das multas fixadas nas demandas de adjudicação compulsória, por absoluta impossibilidade de outorgar a escritura de compra e venda aos seus consumidores, o que redundará na falência da empresa".
Às fls. 449 e 450, decisão admitindo o especial.
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 691.738 - SC (2004⁄0133627-7)

VOTO

VOTO: MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator) :


I - Necessidade de impugnação específica do artigo 273, do CPC

A recorrente, entendendo ter sido prejudicada pela reforma, promovida pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, da decisão que lhe havia concedido tutela antecipada, interpõe Recurso Especial sem argüir, de maneira expressa, lesão à norma do art. 273 do CPC. Em lugar disso, a parte alega a violação unicamente dos dispositivos de direito material em que se baseou o Tribunal de origem na ponderação sobre a verossimilhança de suas alegações. Com base nessa violação, pleiteia a reforma do julgado, com o restabelecimento da tutela antecipada revogada pelo Tribunal.
A questão deve ser enfrentada sob a ótica da função e aplicabilidade do artigo 273, e sua inter-relação com os dispositivos de direito material cuja efetividade visa a garantir.
Ao decidir pela revogação da tutela antecipada, o Tribunal recorrido transcreve o texto do art. 273 do CPC (fls. 392) e, ato contínuo, cita acórdão e trechos de doutrina ponderando acerca dos requisitos para a concessão da tutela antecipada. Conclui que para a concessão de tal medida é necessário produzir prova inequívoca das alegações (com a pertinente observação de que tal prova se destina à demonstração da probabilidade do direito invocado); que a afirmação da parte deve ser verossimilhante; que a medida terá de ser reversível; e que ao requerente incumbe demonstrar ter fundado receio quanto à demora na concessão da medida (ou, conforme o caso, que a defesa da parte contrária se mostre manifestamente improcedente ou protelatória).
Todavia, no momento em que promoveu a análise da verossimilhança da alegação do recorrente, o Tribunal concluiu pela impossibilidade de concessão da medida porquanto ela não estaria - prima facie - amparada no direito material.
Vale dizer: o que fundamentou a revogação da tutela antecipada foi a interpretação que o Tribunal fez das normas de direito material, não do art. 273 do CPC. Assim, se violação houve, é dessas normas de direito material. O dispositivo de direito processual, com os limites que estabelece à atividade do juiz, foi respeitado. Para perceber isso, basta notar que, caso a parte tivesse interposto este Recurso Especial alegando exclusivamente violação ao art. 273 do CPC, naturalmente não teria o recurso sido conhecido. A norma processual, quando muito, foi violada de maneira indireta.
Foi ao proceder a ligação entre direito material e processual, para fins de ponderação da verossimilhança das alegações, que falhou o Tribunal a quo, segundo alega o recorrente. Por isso é que foi com fundamento nas normas de direito material que este recurso foi interposto e não há óbice ao conhecimento deste recurso especial.

II - Prequestionamento

Superada a questão inicial, é forçoso reconhecer que há, sem qualquer dúvida, o prequestionamento da matéria sub judice. Com efeito, os arts. 1.488 e 2.035, do CC⁄02, bem como o art. 273 do Código de Processo Civil foram mencionados de maneira expressa no aresto recorrido. A alegação de violação desses dispositivos, portanto, ao menos em status assertionis, é passível de ter ocorrido e não há óbices a que este recurso seja conhecido em seu mérito.

III - A interpretação dos arts. 1.488 e 2.035 do CC⁄02.

A questão ora em exame diz respeito à aplicação das disposições do Código Civil de 2002 (especificamente, o artigo 1.488 desse diploma legal) às relações jurídicas formadas antes de sua vigência. Ou seja, trata-se de definir o alcance do

artigo 2.035 do Código que, estabelecendo uma regra de transição entre a lei antiga e a lei nova, dispõe:

Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.

Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar os preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

Há, na norma supra transcrita, duas regras distintas, a saber: (a) a fixação da nova lei como diploma regulador dos efeitos de quaisquer contratos, firmados anteriormente à vigência do novo código (caput); e, (b) a não prevalência de uma convenção, na hipótese de ela entrar em confronto com os princípios de ordem pública introduzidos pela nova lei (parágrafo único). Ou seja: a hipótese "a" destina-se a regular todos os contratos anteriores, incidindo unicamente sobre seus efeitos, que são mantidos; a hipótese "b", por sua vez, destina-se a fulminar apenas alguns contratos (contrários à ordem pública), eliminando, portanto, de maneira completa a sua eficácia.
No caso concreto, a norma cuja aplicação se pleiteia é o art. 1.488 desse diploma, que dispõe:
Art. 1.488. Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito.
(...)

Essa norma claramente não visa à desconstituição completa de um negócio jurídico, sob o argumento de lesão à ordem pública. Assim, a questão não se situa no âmbito do parágrafo único do art. 2.035 do CC⁄02. Essa norma instituiu um direito potestativo à divisão do gravame hipotecário, direito esse que pode ser exercido pela parte interessada e a que não corresponde prestação alguma da outra parte. Vale dizer: uma vez preenchidos os requisitos da lei (imóvel que vier a ser loteado, ou em que se constituir condomínio edilício), o direito pode ser exercício pelo interessado, e à contra-parte competirá meramente se sujeitar a esse exercício.
Disso decorre que a Lei não interfere no contrato de hipoteca. Este continua válido, entre as partes signatárias. O que é criado pela Lei é uma válvula de escape para os adquirentes das unidades do loteamento ou do condomínio edilício, em face de quem os efeitos da hipoteca não se produzem. Trata-se, portanto, de um obstáculo exterior, imposto por lei, ao contrato. Aplicam-se, por exceção, à hipoteca (que um direito real) os princípios que regem os contratos consensuais, que produzem efeitos exclusivamente entre as partes signatárias.
A inoponibilidade de um contrato aos terceiros que dele não participam é uma hipótese comumente associada, pela doutrina que se debruçou sobre o estudo dos negócios jurídicos sob o ângulo de sua existência, validade e eficácia, a uma limitação da eficácia do instrumento (confira-se, por todos, LUIZ ROLDÃO DE FREITAS FOMES, "O ato jurídico nos planos da existência, validade e eficácia" in Revista Forense, vol. 327, págs. 81 a 90, esp. pág. 87). Estamos, portanto, claramente no âmbito do caput do artigo 2.035 do Código Civil.
Tratando-se de uma questão relacionada à eficácia dos negócios jurídicos, bastaria o confronto entre o disposto nos arts. 1.488 e 2.035 do Novo Código para se concluir pela possibilidade da divisão do gravame hipotecário, porque os efeitos do contrato são expressamente regulados pela Lei Nova.
Todavia, é importante notar que essa conclusão não decorre unicamente da interpretação literal da lei. Ela se coaduna com todos os princípios que informam o Código Civil de 2002 e demonstra que seus dispositivos não estão estabelecidos de forma aleatória. Há, não apenas uma harmonia internamente no sistema, mas também uma perfeita adequação entre essa harmonia interna e o contexto histórico e social brasileiro.
O art. 1.488 do CC⁄02 consubstancia um dos exemplos de materialização
do princípio da função social dos contratos, que foi introduzido pelo novo código. Com efeito, a idéia que está por traz dessa disposição é a de proteger terceiros que, de boa fé, adquirem imóveis cuja construção - ou loteamento - fora anteriormente financiada por instituição financeira mediante garantia hipotecária. Inúmeros são os casos em que esses terceiros, apesar de terem, rigorosamente, pago todas as prestações para a aquisição de imóvel - pagamentos esses, muitas vezes, feitos às custas de enorme esforço financeiro - são surpreendidos pela impossibilidade de transmissão da propriedade do bem em função da inadimplência da construtora perante o agente financeiro.
Ora, a disposição introduzida no art. 1.488 do CC⁄02 veio amparar a boa fé desses adquirentes criando uma exceção à regra da oponibilidade erga omnes da hipoteca (art. 1.419, do CC⁄02). Essa exceção se justifica exatamente por ser, no plano fático, excepcional a própria hipótese regulada pela norma. É já cediça a compreensão, tanto pela doutrina, como pela jurisprudência, de que a única maneira de se otimizar a realização do princípio da igualdade é mediante o reconhecimento de que, em algumas situações, os sujeitos de uma relação jurídica não se encontram em posição similar. Nesses casos, em que as circunstâncias de fato provocam um desequilíbrio, tratar esses sujeitos de maneira objetivamente igual não basta para a plena realização do princípio da isonomia. É necessário reequilibrar os pólos da relação, estabelecendo regras excepcionais que tutelem a parte mais frágil. Promove-se, com isso - sempre nos termos estritos da lei - a igualdade substancial entre as partes, em detrimento da mera igualdade formal - que, em última análise, é apenas uma roupagem diferente para o arbítrio.
A aceitação dessa necessidade, em vez de implicar uma subversão da ordem jurídica estabelecida desde a Revolução Francesa, com a exaltação dos princípios do pacta sunt servanda e da propriedade privada, na verdade nada mais é que a complementação do movimento nela iniciado. Com efeito, conforme demonstra ARRUDA ALVIM no excelente apanhado histórico que fez por ocasião de palestra proferida pouco antes do início da vigência do novo código (publicada na Revista Forense, vol. 371, págs. 51 a 72, sob o título "A função social dos contratos no novo Código Civil"), a introdução do cânone da igualdade cega, por parte dos revolucionários franceses, foi essencial para corrigir a enorme distorção que o tratamento diferenciado dispensado à nobreza na França do final do século XVI representava. A partir da defesa do princípio da igualdade, fundado inicialmente no respeito cego à autoridade dos contratos e à propriedade privada, possibilitou-se a tomada de poder pela classe burguesa e o desenvolvimento de todo o sistema capitalista moderno, com notórios reflexos no direito privado e no direito público.
A evolução da sociedade, todavia, conduziu-nos, notadamente após às duas grandes guerras, ao aprimoramento desses princípios. Conforme também relembra ARRUDA ALVIM, o individualismo que está na base dos ideais revolucionários deu lugar ao conteúdo social do direito. Tal evolução se fez sentir, paulatinamente, em diversos ramos do direito. Para citar apenas seus principais reflexos dessa evolução, inicialmente, as garantias trabalhistas vieram corrigir o desequilíbrio de poderes entre empresários e trabalhadores; posteriormente, a idéia de função social da propriedade foi reconhecida no plano constitucional; mais recentemente, os desequilíbrios das relações de consumo foram mitigados com a criação do Código de Defesa do Consumidor; e, finalmente, a partir da vigência do Novo Código Civil, também a função social dos contratos passa a ser expressamente alçada ao patamar de norma cogente.
Trata-se, portanto, de um movimento claro e sistemático na direção da correção das distorções sociais, de uma tentativa de reduzir as desigualdades e propiciar ao juiz mecanismos para que possa, da melhor maneira possível, buscar a realização da justiça.
Naturalmente, como toda a criação humana, o sistema é passível de falhas. A própria discussão acerca da mitigação das garantias trabalhistas está a demonstrar que, com a evolução e a aplicação do direito, todos os princípios se lapidam, se adaptam, são levados ao seus extremos e, demonstradas suas incoerências, incitam os aplicadores do direito a os repensarem, num movimento contínuo. Assim

também ocorrerá com o princípio da função social dos contratos. Para que essa evolução se possa verificar, todavia, é necessário que esse princípio seja, reiteradamente, submetido ao duro teste da realidade. Somente a prática demonstrará quais os limites em que o magistrado transitará em sua aplicação. Por isso é importante, em cada caso, relembrar o que levou o legislador a introduzir essa inovação em nosso sistema jurídico e, especificamente para casa caso concreto, verificar se há harmonia no sistema, se há uma situação de fragilidade de uma das partes e se, dado tudo isso, a aplicação do princípio se justifica.
Ora, quando fazemos isso em relação ao caso sub judice, fica claro que a única solução possível é a aplicação imediata do art. 1.488 do Novo Código Civil. Nos autos, está fartamente comprovada a existência de inúmeras ações, propostas em face da recorrente por terceiros que, tendo pago todas as prestações do financiamento dos imóveis que adquiriram, pretendem ver reconhecido seu direito à transmissão do bem por escritura pública. Trata-se de uma questão que apresenta um reflexo social considerável e que traz, tanto à recorrente como a esses terceiros, um prejuízo considerável.
A fragmentação da hipoteca, por outro lado, não implicará prejuízo à instituição financeira, uma vez que, conforme muito bem notado pela magistrada de primeiro grau na decisão que concedeu a tutela antecipada (posteriormente revogada pelo Tribunal de Justiça) :

"no caso em tela, a identificação do valor devido relativamente a cada unidade hipotecada se orientou pela planilha contendo o saldo devedor, fornecida recentemente pelo próprio réu, e o valor atualizado da avaliação procedida por ocasião da feitura da hipoteca, observados os critérios de correção nela previstos. Do quadro apurado, infere-se que os interesses do demandado⁄credor ficam preservados e bem assim a garantia no cumprimento da obrigação, não se vislumbrando na concessão da medida qualquer irreversibilidade do direito, até porque eventual diferença em seu favor fica resolvida de acordo com o disposto no §3º do mesmo preceito legal já invocado, isto é, art. 1.488 do Código Substantivo" (fls. 22)

Trata-se nitidamente de um caso em que o reconhecimento do suposto direito de uma parte implicará um desnecessário agravamento da situação de todos os demais pólos da relação jurídica. E de uma hipótese em que a mitigação desse aparente direito equilibra perfeitamente o sistema. O princípio da função social dos contratos, portanto, clama aplicação no caso concreto. O fracionamento da hipoteca é providência de rigor. No mérito, portanto, merece reconhecimento o direito da recorrente à tutela antecipada pleiteada.

IV - Inexistência do óbice da Súmula 7

É importante deixar claro que o provimento deste recurso não representa reexame de provas, vedado pela Súmula 7 desta Corte. O principal fundamento que levou o Tribunal a quo a revogar a tutela antecipada concedida pelo Juízo de Primeiro Grau foi a suposta ausência de verossimilhança das alegações.
O Tribunal recorrido partiu, para ponderar a inexistência de prejuízo, do mesmo fato argüido pela parte como fundamento desse prejuízo, qual seja, a existência de inúmeras ações propostas pelos adquirentes dos apartamentos do Edifício Residencial Paola. Deu a esse fato, porém, uma conseqüência jurídica diversa da pleiteada, fundamentando a ausência de prejuízo nas seguintes razões:

"Da mesma forma, o periculum in mora não pode ser tido como presente a ensejar a concessão da tutela antecipada, já que a fundamentação deduzida pela agravada para amparar este requisito, diz respeito a demandas de adjudicação compulsória intentadas pelos compradores das unidades do Edifício Residencial Paola. Ora, se as unidades habitacionais encontravam-se hipotecadas e descritas individualmente no Tegistro de Imóveis, conforme comprovado às fls. 60 a 68, a comercialização era tida como vedada enquanto o devedor não honrasse com o pactuado.
Contudo, verifica-se que a agravada não respeitou esta situação, vindo a comercializar os apartamentos e, pelo que se conclui, sem comunicar aos compradores a real situação.
(...)
Assim, para demonstrar o periculum in mora a autorizar a concessão da tutela antecipada, fundamentou seu pedido nas ações intentadas pelos consumidores que se viram lesados e ludibriados pela construtora, situação que desponta ser nitidamente maliciosa e de cunho totalmente sofista, visando unicamente esquivar-se da obrigação assumida" (fls. 397 e 398)

Ora, por esse trecho nota-se que o Tribunal de origem não desconsiderou a existência das inúmeras ações propostas em face da recorrente. O que fundamentou a ausência de prejuízo, porém, foi a suposição de que "as unidades habitacionais encontravam-se hipotecadas e descritas individualmente no Registro de Imóveis" e que o prejuízo foi gerado pelo fato de a recorrente ter comercializado essas unidades sem observar uma suposta vedação a essa comercialização.
Tendo isso em vista, a revisão do posicionamento do Tribunal a quo acerca do perigo de dano irreparável é possível, especificamente no caso concreto, independentemente de revolvimento da questão fática.

V - Multa do artigo 538, § único, do Código de Processo Civil

Finalmente, também não merece prosperar a multa imposta pelo Tribunal de origem, com fundamento no artigo 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil, em função da suposta interposição de embargos com intuito meramente protelatório.
Os embargos apresentados pela requerente (fls. 402⁄405) se sustentavam em duplo fundamento: o primeiro, de que o Tribunal não havia apreciado corretamente as normas dos artigos 1.488 e 2.035 do novo código civil; o segundo, de que o aresto continha erro no que diz respeito à consideração de que o condomínio edilício já havia sido construído quando da constituição da hipoteca.
Com relação ao primeiro fundamento, de fato não seria o caso de embargos. Bem ou mal, o Tribunal de Justiça havia apreciado a questão, e a irresignação da recorrente deveria ter sido promovida pela via do recurso especial. Todavia, o segundo fundamento era pertinente, e sobre ele deveriam ter se manifestado os Desembargadores que participaram do julgamento do recurso.
O erro cometido pelo Tribunal acerca do momento em que foi construído o condomínio não justifica a anulação do aresto, nesta via. É, como de resto foi, possível apreciar a matéria independentemente dele. Todavia, aplicar a multa regulada

pelo artigo 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil numa hipótese em que o acórdão contém erro material - ainda que não determinante para o julgamento da causa - é um claro exagero, devendo ser excluída a penalidade.
Forte em tais razões, conheço parcialmente do recurso e, nessa parte, dou-lhe provimento, para o fim de determinar o restabelecimento da tutela antecipada concedida pelo Juízo da 1ª Vara Cível da Comarca de São José, e para revogar a multa imposta pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.


RECURSO ESPECIAL Nº 691.738 - SC (2004⁄0133627-7)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : ADMINISTRAÇÃO, CONSTRUÇÃO E INCORPORAÇÕES DE IMÓVEIS LTDA - SANT'ANA
ADVOGADO : EVERALDO LUÍS RESTANHO E OUTRO
RECORRIDO : BESC S⁄A CRÉDITO IMOBILIÁRIO
ADVOGADO : IVO MULLER

VOTO

O EXMO. SR. MINISTRO CASTRO FILHO: Sra. Ministra Presidente, em princípio, parece-me que o voto de V. Exa. está bem encaminhado. Creio, como afirmou o Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, que, aplicando a súmula por extensão, poderíamos resolver a questão.

Por tais razões, não tenho dúvida em acompanhar o voto de V. Exa., conhecendo parcialmente do recurso especial e, nessa parte, dando-lhe provimento, principalmente com base na súmula, que é recente.


Ministro CASTRO FILHO

RECURSO ESPECIAL Nº 691.738 - SC (2004⁄0133627-7)
ESCLARECIMENTO

MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS: Sra. Ministra Presidente, ouvi com atenção o voto de V. Exa. e fiquei profundamente preocupado com a questão do ato jurídico perfeito. Na verdade, não me parece que o Art. 2.035 possa alterar a execução de um ato perfeito.
Na hipótese, não ocorre execução. Trata-se de caso típico de a alteração atingir a execução do ato. O imóvel foi desmembrado, dividido, incorporado. Hoje, ele é propriedade horizontal. Parece-me não haver prejuízo algum em que a hipoteca passe a incidir sobre as unidades autônomas. Não encontrei e nem creio que houve alegação desse prejuízo.


RECURSO ESPECIAL Nº 691.738 - SC (2004⁄0133627-7)
VOTO VENCIDO

O EXMO. SR. MINISTRO CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO:
Senhora Ministra Presidente, em todas as vezes que examinamos a tutela antecipada, o fizemos pela via do art. 273. Se tal artigo não está questionado, com todo respeito, não posso conhecer do recurso especial.
Não é pertinente falar em prequestionamento implícito do art. 273, porque não se pode confundir prequestionamento implícito com ausência de indicação do dispositivo violado no recurso especial, e, no caso, o art. 273 não foi indicado como violado. Então, a meu ver, não posso admitir o conhecimento do especial, porque a parte não apontou como violado o referido dispositivo.
Nesse caso, posso examinar uma parte do acórdão, aquela relativa à verossimilhança, ou seja, de que, em princípio, é possível a aplicação do art. 1.488 do Código Civil vigente, mesmo sendo o contrato anterior, com base na interpretação que se dá ao art. 2.035, mas não posso superar o segundo fundamento do acórdão, de que não existe nenhum perigo da demora, que também é um pressuposto do art. 273.
Então, mesmo que eu afaste o primeiro fundamento, sobre o que guardo reserva, se não tenho apontado como violado o art. 273, não há condição de conhecer do recurso especial para dar-lhe provimento, porque não posso superar a questão relativa à ausência de indicação pela parte de dispositivo apropriado. Desejo deixar claro que é esse o ponto objeto da divergência, considerando que a maioria entendeu possível assim fazer, dispensando a indicação no especial do dispositivo pertinente.
Por tais razões, não conheço do recurso especial.




RECURSO ESPECIAL Nº 691.738 - SC (2004⁄0133627-7)
VOTO-VOGAL

MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS: Srs. Ministros, o acórdão fez referência ao Art. 1.488 e, se este se aplica, não resta corolário. É a minha sensação nessa medida cautelar que tem como pressupostos, justamente, o dispositivo do Art. 1.488.
Peço vênia ao Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito para acompanhar o voto da Sra. Ministra Relatora, conhecendo parcialmente do recurso especial e, nessa parte, dando-lhe provimento.


CERTIDÃO DE JULGAMENTO
TERCEIRA TURMA
Número Registro: 2004⁄0133627-7 RESP 691738 ⁄ SC

Números Origem: 20030122583 64020124523

EM MESA JULGADO: 12⁄05⁄2005

Relatora
Exma. Sra. Ministra NANCY ANDRIGHI

Presidenta da Sessão
Exma. Sra. Ministra NANCY ANDRIGHI

Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. PEDRO HENRIQUE TÁVORA NIESS

Secretário
Bel. MARCELO FREITAS DIAS

AUTUAÇÃO

RECORRENTE : ADMINISTRAÇÃO, CONSTRUÇÃO E INCORPORAÇÕES DE IMÓVEIS LTDA - SANT'ANA
ADVOGADO : EVERALDO LUÍS RESTANHO E OUTRO
RECORRIDO : BESC S⁄A CRÉDITO IMOBILIÁRIO
ADVOGADO : IVO MULLER

ASSUNTO: Civil - Contrato - Mútuo - Sistema Financeiro de Habitação - SFH

SUSTENTAÇÃO ORAL

Sustentou oralmente o Dr. Túlio Kavalazi Filho, pelo recorrente.
CERTIDÃO

Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Turma, por maioria, conheceu em parte do recurso especial e, nessa parte, deu-lhe provimento. Votou vencido o Sr. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito. Os Srs. Ministros Castro Filho e Humberto Gomes de Barros votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro.


Brasília, 12 de maio de 2005
MARCELO FREITAS DIAS
Secretário

Imprimir
Ir ao topo

Aplicativos Móveis

Adquira uma assinatura de acesso digital e tenha acesso aos aplicativos para tablets e smartphones, com conteúdo completo.

CONHEÇA TAMBÉM



Todos os direitos reservados. Proibida a cópia total ou parcial deste conteúdo.